A pantera, por lá,
A pantera, por lá,
"Loucura" é um espetáculo que advém de uma pesquisa sobre este tema que a mim sempre foi inquietante. O "louco" muitas vezes é colocado como um ser que perdeu o contato com a realidade e me pergunto: será? Ele pode simplesmente enxergar com novos olhos coisas que simplesmente não queremos olhar, dada a sua profundidade, sua intensidade. Um "louco" é um homem perdido em si, perder-se em si é entrar no labirinto do Rei Minos sem o fio de Ariadne, é encontrar o Minotauro, meio homem, meio bicho e ser devorado. A porção animal vem à tona e tudo que é imposto como bons costumes, regras sociais e acordos se desfazem. O "louco" de nosso espetáculo não segue as regras, não tem superego que lhe diga o que é certo ou errado, ele é id puro; pulsão e potência.
Sempre tive na literatura uma aliada - poesia, prosa, dramaturgia, biografia - são mundos que se abrem, ampliam a imaginação do ator, nos colocam em lugares que sozinhos muitas vezes não visitaríamos. Nos apresentam facetas, espelhamentos de nós espalhados nas personagens e nas vidas de Shakespeare, Camus, Beckett, Brecht, Jung, Rilke, entre tantos outros.
E foi a partir deste território, do imaginário desses autores, que nasceu o espetáculo. Conjuntamente com Marcelo Lazzaratto, diretor e mais que isso, um grande companheiro de vida e de palco, mergulhamos nesta pesquisa, entrevendo nas páginas desses autores trechos que iluminassem a "Loucura". Seis meses depois, em dois fins de semana, entre pilhas de livros e textos, conseguimos o esqueleto dramatúrgico da peça. Optamos por a peça acontecer em uma revolução solar, ou seja, um dia na vida deste "louco" que nunca nomeamos, ele apenas é. O que se tem no palco é um tablado branco e um ator. Um dia esse "louco" foi colocado neste espaço - seria uma cela? - e ali é abastecido por livros, comida, um urinol para as necessidades fisiológicas e no momento de revolta uma camisa de força, claro. O que ele busca? Ele é um homem que avidamente se questiona, que purga suas dores através de palavras e circunstâncias alheias a ele. Nesse sentido podemos estabelecer uma relação desse louco com o trabalho de ator. Será que no ofício do ator, de algum modo não encontramos essa mesma busca? Importante salientar que durante o processo optamos por não fazer visitas a instituições psiquiátricas queríamos descobrir como a "loucura" em mim se manifestava.
Em 2001 estreou "Loucura" monólogo da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico. Como escreveu Alberto Guzik em sua crítica no jornal "O Estado de São Paulo": "Loucura é o mais verbal dos espetáculos físicos e o mais físico dos espetáculos da palavra". O que é apresentado ao público em 50 minutos é pulsão e potência dentro de uma partitura física rígida e desta colcha de retalhos textual elementos que indicam a fragmentação deste homem. Contabilizo no corpo pontos no queixo, uma artéria estourada no braço, calos, luxações. Muitas vezes sai do espetáculo absolutamente esgotado física e mentalmente. Este território exige visceralidade, exige o não poupar-se. Levei sim "o personagem pra cama", muitas noites de insônia, pesadelos, exaustão. Durante o período de ensaios muitas vezes fizemos três "gerais" e o terceiro era sempre o melhor, pois desta exaustão brotava a verdade deste homem, exausto por debater-se consigo mesmo. Eu era muito jovem na época, estreei "Loucura" com 23 anos, recém saído do Teatro-escola Célia Helena - onde me formei e onde hoje dou aula. Olhando a trajetória desde a estreia até hoje e contabilizando mais ou menos 150 apresentações, o espetáculo foi se modificando, mas se modificando por dentro, visto que as inquietações mudam, novas perguntas são feitas. Em "Loucura" não procuramos responder, dar um diagnóstico sobre o tema e sim dividir perguntas, propor questionamentos. Muitas vezes escutamos que o espetáculo deveria se chamar "Sanidade" e não "Loucura", exatamente por isso.
Gabriel Miziara é ator e diretor, membro da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico que ano que vem comemora dez anos de existência. "Loucura" foi seu primeiro monólogo.
Outro dia eu vi uma entrevista no Jô com aquela atriz que foi modelo. (Como é o nome dela? Não tem importância.) É uma que faz sempre e só novelas do mesmo autor, dirigidas pelo mesmo diretor. Essas novelas que têm homem sem camisa o tempo todo.
O negócio é que ela estava lá ridicularizando os cursos de teatro que fizera nos anos 70 nos States. E sacaneou com o Living Theatre! Logo o avô do teatro alternativo, o pai do off-broadway, uma das grandes invenções do teatro norte-americano no século XX (houve teatro americano antes do séc. XX?). Ficou um tempão fazendo piada dos exercícios, da pesquisa, das ferramentas de descoberta de uma nova cena, de um novo tipo de ator, mais corporal, por vezes mais visceral e talvez até menos técnico. Um ator criativo e, sobretudo, senhor da sua criação.
Então me lembrei da Judith Malina e do Julian Beck, fundadores do Living Theatre. A Judith Malina é a memorável vovó da "Família Adams I". E o Julian todo mundo conhece como aquela figura assustadoramente magra no "Poltergeist 2". Pois é... Eles revolucionaram o teatro e ficaram lembrados por esses dois filmes de segunda! São os mistérios da mediocridade, do lugar-comum, do esculacho que é a memória cultural de todo canto, em qualquer lugar.
Entre nós, é inevitável lembrar-se de nomes como o de Maria Alice, que ficou conhecida pelo grande público como a velhinha que andou dando uns tapas na Pantera! A Maria formou artistas, participou da montagem histórica do "Rei da Vela" no Oficina, fundou os dois núcleos do Teatro do Ornitorrinco, se apresentou por todo o mundo, fez cinema e até deu o ar da sua graça na TV. E fica reduzida a uma bizarra velinha maconheira!? Uma grande brincadeira, claro. Que ela só topou graças à sua confiança na juventude e nas novas ideias. À sua maravilhosa loucura sã!
Em sua autobiografia não-autorizada, Maria diz: "Os artistas tendem a intuir o futuro, deixam o inconsciente livre, permitem o vir-a-ser. Isso me torna aventureira, sabendo que ninguém é dono de uma única verdade, e eu deixo fluir a minha intuição, gozo com ela principalmente quando encontro um outro que também embarca nessa... Percebo nisso um caráter espontâneo de solidariedade. Tudo já foi dito de outras maneiras. A gente, no máximo, pode reorganizar aquilo que já foi expresso. Dessa forma poderemos sempre completar o que o outro começou. O "ser mestre" é a gente começar a perceber que nossa vivência é mais épica do que psicológica. O ator é um privilegiado. A vontade de ser ator é o desejo de se desprender. Quem estiver numa boa escola ou grupo de teatro não precisa fazer terapia."
É a mesma loucura que movia a Myriam Muniz. Um dia eu a vi, numa sala de aula, protagonizar uma das cenas mais fortes e delicadas que já presenciei no ensino do teatro. Ela colocou um jovem ator em pé e disse pra ele com a sua voz italianadamente rouca, de quem fumava e bebia uma boa cervejinha... Ela disse: "eu vou fazer uma coisa em você e você reage".
Daí ela pôs as mãos no peito do jovem e deu um empurrão. A reação dele foi apenas de afastamento. Ela deu um passo em direção a ele e deu outro empurrão. Novo afastamento. Isso se repetiu algumas vezes até que ela começou a bater o pé e o jovem começou a ficar acuado. Num dado momento, ele começou a correr em círculos e ela correndo atrás dele. Até que ela parou, virou-se e apenas esperou que ele viesse correndo até o seu encontro, completando o círculo. Nesse instante, diante do susto do aluno ao dar de cara com a mestra, ela o amparou e disse com a mesma voz, só que ternamente: "você só sabe fugir, né? Não precisa ter medo... isso aqui é só teatro... é tudo de brincadeirinha, bobo!"
Judith Malina, Maria Alice e Myriam Muniz... todas fundadoras, atrizes e diretoras de um teatro vivo, investigativo, instigante. Um teatro sem verdades absolutas, sem certezas. De onde brotam as dúvidas, de onde saem as respostas, de onde nascem as verdadeiras obras de arte e os grandes atores - e não a pasteurização dos enlatados.
É por essas e mais aquelas que prefiro não usar a palavra que arrepia - laboratório. Nunca usei. Sempre optei pelos termos pesquisa, investigação, experimentação. Um velho professor dizia mais ou menos assim: "nos anos 60 a gente fazia tanto laboratório... misturava os ingredientes, não anotava a fórmula nem as condições de experimentação... feito cientista maluco que, um dia, acaba mandando tudo pros ares!"
Gerson Steves tem 25 anos de atividades teatrais na cidade de São Paulo, tendo atuado como diretor, dramaturgo, ator, produtor e professor. Portanto, fez muita pesquisa na vida.
A peça ganha mais com a interferência do criador do texto, ou somente com a exploração do diretor e dos atores sobre o texto?
Sérgio Roveri
Tivesse eu o objetivo de atrair a ira de boa parte dos diretores brasileiros, eu começaria este pequeno artigo criando uma nova máxima: autor bom é autor vivo. Mas como respeito profundamente a classe dos diretores e tive o privilégio de me tornar amigo íntimo de quase todos com quem já trabalhei, me permito aqui uma pequena alteração nesta máxima recém-criada: autor bom também pode ser autor vivo. Ou vice-versa. Difícil é fazer com que alguns profissionais acreditem nisso.
Muito estranha a figura do autor. Ela parece incomodar não somente durante os ensaios, mas também ao longo da temporada. Como se nós, autores, fôssemos uma espécie de inspetor geral interessado no livro-caixa da companhia. Quando, na verdade, acredito eu, queremos ver apenas como é a voz, o corpo, a emoção e, principalmente, como se equilibram em pé todas aquelas personagens que, ao escaparem do nosso computador e da nossa impressora, não passavam de figuras chapadas em branco e preto. Se somos mesmos os pais biológicos de tantas histórias, penso que nosso acesso ao berçário deveria ser irrestrito. Porém, respeito as barreiras.
Assumo aqui que não sei dirigir. Não tenho uma visão cênica aprimorada, meu conhecimento de luz é primário, tenho uma queda, pequena, é verdade, mas ainda assim incontrolada para o melodrama e sinceramente não sei se conseguiria controlar um grupo de atores. Mais que isso: talvez eu já me sentisse satisfeito com a primeira visão do personagem que cada um deles me apresentasse. Por isso, minha admiração ao profissional que entende daquilo que eu não entendo: o diretor.
Mas existe uma sutileza que se encontra mais em poder do autor do que nas mãos do diretor e do elenco: é a sutileza da intenção, é aquela filigrana de emoção que parecia concentrada unicamente naquela palavra que o diretor resolveu cortar, é o silêncio entre uma frase e outra que, num primeiro momento, somente o autor é capaz de ouvir.
E então eu me pergunto: se é possível contar com esta ferramenta valiosíssima, que é a observação do autor, qual o sentido em desprezá-la? Não pareceria muito mais lógico e produtivo se, durante as leituras de mesa e, mais adiante, nos ensaios propriamente ditos, o elenco pudesse ter a chance de solicitar ao autor um hemograma completo dos seus personagens - ainda que os elementos oferecidos por ele fossem desprezados ao longo do processo? Imagino o imenso deleite que seria poder perguntar a Shakespeare se Hamlet é mais vítima de loucura ou de caprichos. Talvez não estejamos criando Hamlet, alguns podem argumentar, mas sabemos o que estamos criando. E andamos cada vez mais loucos para compartilhar este saber.
Entendo que o processo de direção pode ser tão solitário quanto o é, na maioria das vezes, o processo de escrita de um texto. Mas, o que eu defendo aqui, é a possibilidade de uma democratização nestas relações. Que cada um tenha o direito de mostrar o que sabe e o que tem de melhor. Quem ganha com isso não sou eu, os diretores ou o elenco. Quem ganha com isso é aquela pessoa desconhecida, que sai de casa, enfrenta filas e deixa alguns reais na bilheteria como um crédito de confiança em nosso trabalho. A ela, devemos tudo. O resto a gente resolve nas coxias.
Sérgio Roveri é jornalista e dramaturgo. É autor das peças Andaime, prêmio Funarte de Dramaturgia, e Abre as Asas Sobre Nós, prêmio Shell de autor. Duas peças de sua autoria estão em cartaz em São Paulo até o fim de julho: Dueto da Solidão, no Sesc Vila Mariana, e A Vida que eu Pedi, Adeus, no Teatro Cosipa.
Luiz Carlos Vasconcelos
Se considerarmos que a crítica é a atividade exercida por um espectador profissional - o crítico - que tem a função de analisar as várias camadas constitutivas do objeto cênico para detectar a sua eficiência enquanto experiência estética significativa;
Se considerarmos também que "espetáculos com enfoques diferentes" quer se referir a toda a gama de experiências cênicas desde as que são construídas a partir de uma literatura dramática até aquelas apoiadas na própria construção poética da cena e, portanto, determinadoras de novos paradigmas;
Se considerarmos, por fim, que o fenômeno teatral sempre se apoiou e sempre se apoiará num triângulo imutável - teatro/ ator/ espectador, podemos afirmar: independentemente do lugar, da época, da forma, do novo paradigma a ser estabelecido, ou da última invenção tecnológica arrastada para dentro da cena, que para existir a arte do teatro, alguém (um ator, uma pessoa) terá que realizar algo (com alguma qualidade artística) diante de outro alguém (uma testemunha, um espectador).
Se aceitas essas considerações preliminares, podemos então afirmar que o papel da crítica é justamente revelar e analisar as diferenças e mesmices que constituem a pluralidade da cena contemporânea. Portanto, a produção crítica deveria ser diferente na proporção do número das diferentes realizações cênicas.
Se aceitarmos como verdadeira a tríade teatro, ator e espectador, deveríamos aceitar que o critério de análise a ser adotado pela crítica, mesmo diante de toda diversidade, poderia ser um só, ou seja - responder às seguintes questões fundamentais: que qualidade/eficiência tem o que o ator realiza e a cena que foi construída? E o que imprime/causa esse ator e essa construção cênica, no corpo-experiência do espectador? Responder a essas questões será o desafio dos grupos, diretores e também dos críticos.
Mas como exigir aprofundamento da crítica se os espaços disponibilizados para o exercício crítico nas páginas dos periódicos cada dia fica menor? Por que publicar só uma crítica sobre determinada encenação? Por que não arejar esses espaços convidando outros profissionais da área, inclusive estudantes, para um exercício analítico com várias leituras sobre o mesmo objeto cênico?
Mas os críticos só não podem esquecer, de nenhuma forma, que criticar é produzir sentido a partir de um fenômeno que, em si, já é produtor de sentido; é o olhar do analista sobre o olhar do artista sobre o mundo. E esse é um exercício estético e ético.
Luiz Carlos Vasconcelos - Diretor e ator, criador do palhaço Xuxu, um dos fundadores da Escola Piollin e do Piollin Grupo de Teatro (www.piollin.org.br), sediados em João Pessoa /PB
Antes de mais nada, considero que a crítica é um elemento fundamental para o crescimento e o desenvolvimento da atividade teatral e lamento muitíssimo que cada vez exista menos espaço nos jornais para esse tipo de atividade. Estamos vivendo um tempo em que os profissionais da crítica perderam o espaço para discutir idéias e se tornaram mais e mais indicadores de entretenimento. Uma cidade como Belo Horizonte, por exemplo, com algumas honrosas exceções, praticamente não tem críticos que exerçam sua função regularmente.
Dito isso, a título de introdução, entro no tema em questão, afirmando que não vejo por quê deva existir setorização da crítica para os diferentes tipos de espetáculos.Acho que o crítico é uma espécie de espectador privilegiado que deve ter amplas condições de compreender a diversidade e a complexidade dos múltiplos extratos da arte, e especificamente, do teatro.Criar padrões específicos de análise para determinados "tipos" de teatro soa como uma certa atitude de condescendência que um crítico deve passar longe, pelo bem do meio.
A diversidade é um elemento fundamental para a vida do teatro. É muito bom que exista e floresça o teatro comercial, o experimental, o performático, a vanguarda, o musical, a comédia, a tragédia, o drama, etc. Da crítica espera-se a obviedade de um olhar amplo e sem qualquer tipo de preconceito sobra as múltiplas formas de abordagem teatral.
Agora, independente da linguagem ou da proposta, existe um padrão de qualidade e de rigor que precisa ser reconhecido e apontado. Senão corremos o risco de cair naquela máxima defensiva de que o público ou a crítica não gosta do meu espetáculo porque não entendeu ou porque é burro. O pior inimigo do teatro é o mau teatro que, desgraçadamente, se alastra como erva daninha.
Acredito, sim, que existem critérios de qualidade que podem ser aplicados aos diferentes tipos de espetáculos. Abrir mão disso é arriscar cair num relativismo perigoso. O que se pede a um bom crítico é clareza na argumentação, honestidade, ausência de preconceito e uma boa dose de cultura.
E, para terminar, gostaria de dizer que essa é uma opinião pessoal e que, sendo o Galpão um grupo de atores em que as pessoas têm suas próprias opiniões, muitas vezes divergentes, esse não é um ponto de vista do grupo.
Eduardo Moreira - É fundador do Grupo Galpão (www.grupogalpao.com.br), tendo participado de todas a suas montagens tanto como ator, como diretor e assistente de direção. O Grupo tem sede em Belo Horizonte /MG