A pantera, por lá, era chamada de Angel. Lembrava de Farah, vez por outra, e sabia, há muito, de sua luta contra o câncer. A última vez que a vi foi em um filme de Robert Altman, com um elenco feminino daqueles de parar o trânsito e tirar o fôlego. Era uma personagem delicada que revelava a fragilidade do amor diante do tempo – ali, ela já havia adoecido, embora continuasse dona de uma beleza inversamente proporcional ao seu talento.
Foi objeto de desejo para homens e mulheres. Todos queriam tê-la. Todas sonhavam sê-la. Lembro que eu, adolescente cheio de incertezas, ante o seu sorriso loiro ao vento, ficava dividido entre querer ter e ser a pantera. Por fim, noutro dia, vi o triste registro que ela fez da própria morte. O rosto corroído pela doença e pelos remédios, o corpo de um anjo definhado sobre o leito, o sorriso solar em eclipse.
Corte. Mesma tarde. Outra morte e o boato se espalha como rastilho de pólvora. O garoto em que me espelhara nos 70 havia morrido. Via os desenhos animados na TV, copiava as coreôs e dublava os compactos de vinil enrolando a língua em genuíno embromês. Acalentava calado o sonho proibido de cantar e dançar sob os refletores.
Qualquer um que tenha, um dia, estado ao seu lado, entrevistado ou mesmo o visto numa lojinha de brinquedos, virou celebridade instantânea. Um idiota chegou a dizer que há muito ele estava morto. Inevitável pensar na pressão sobre o artista, que o fez sucumbir: ser sempre inovador e surpreendente. Perguntei a mim mesmo: ‘não basta ser novo uma vez, inovar algumas outras e surpreender tantas? Para permanecer vivo é preciso que seja sempre e para sempre?’
No casamento entre a idolatria e o canibalismo, que vai resultar na hipocrisia, a mídia não permite que esqueçamos os escândalos em que foi envolvido: molestava criancinhas? Era uma biba enrustida que fez filhos de proveta para provar alguma coisa ao pai machista? Como se as respostas fizessem alguma diferença – para o bem e para o mal.
Por outro lado, são necessárias cerimônias lacrimosas para a manutenção da memória do artista que ainda vai render milhões de dólares aos predadores do já agonizante mercado fonográfico.
Novo corte. Começo dos 80. Como fã de Fellini, fui ver “E La Nave Va” e tive meu olhar hipnotizado pela lânguida figura de uma princesa cega do leste europeu. Ninguém menos do que a mulher que mudara os rumos da dança no final do milênio: Pina Bausch.
Mais tarde, de novo na grande tela, vi Pina em “Fale com Ela”, de Almodóvar. Outra vez, como sempre, seu trabalho tocou minha alma. No palco nunca a vi dançar, mas tive a sorte de assistir a algumas de suas coreografias, que misturam dança e teatro, humor e drama, horror e prazer. Tudo numa orquestração que transita do sublime ao bizarro, sem nunca perder a delicadeza. Foi em Pina que meu coração, doído pela frustração de não pertencer a um bailarino, encontrou um pouco de paz.
Ela morreu vítima de um câncer diagnosticado pouco menos de uma semana antes de sua morte. Não sou ingênuo em pensar que ela não tenha sofrido ao emudecer de seu instrumento. Mas para aqueles que, como eu, amavam tanto seu trabalho, fica o alento de supor que ela tenha tido a sorte de uma morte breve.
O livro “Bandoneon – em que o tango pode ser bom para tudo?”, diário de uma de suas montagens escrito por Raimund Hoghe e Ulli Weiss, é para mim mais que uma leitura de trabalho à qual se recorra ao precisar de estímulo. Ainda é uma inspiração. Curiosamente, por obra do destino, sorte ou sei lá o quê, tive a honra de levar para a Europa um dos primeiros exemplares que se traduziu por aqui, em 1989. Ficava sempre imaginando se o livro que levei um dia chegaria às mãos finas da grande bailarina. Ela o folhearia com olhar severo, cabelos puxados, um indefectível cigarro entre os dedos, as mãos pálidas segurando o livro que eu levara na mala e um sorriso austero nos lábios. Se o livro chegou às suas mãos? Não sei, não importa.

Gerson Steves tem 25 anos de atividades teatrais na cidade de São Paulo,
tendo atuado como diretor, dramaturgo, ator, produtor e professor. Ele sabe que
o teatro é efêmero, mas acha isso lamentável.

"Loucura" é um espetáculo que advém de uma pesquisa sobre este tema que a mim sempre foi inquietante. O "louco" muitas vezes é colocado como um ser que perdeu o contato com a realidade e me pergunto: será? Ele pode simplesmente enxergar com novos olhos coisas que simplesmente não queremos olhar, dada a sua profundidade, sua intensidade. Um "louco" é um homem perdido em si, perder-se em si é entrar no labirinto do Rei Minos sem o fio de Ariadne, é encontrar o Minotauro, meio homem, meio bicho e ser devorado. A porção animal vem à tona e tudo que é imposto como bons costumes, regras sociais e acordos se desfazem. O "louco" de nosso espetáculo não segue as regras, não tem superego que lhe diga o que é certo ou errado, ele é id puro; pulsão e potência.
Sempre tive na literatura uma aliada - poesia, prosa, dramaturgia, biografia - são mundos que se abrem, ampliam a imaginação do ator, nos colocam em lugares que sozinhos muitas vezes não visitaríamos. Nos apresentam facetas, espelhamentos de nós espalhados nas personagens e nas vidas de Shakespeare, Camus, Beckett, Brecht, Jung, Rilke, entre tantos outros.
E foi a partir deste território, do imaginário desses autores, que nasceu o espetáculo. Conjuntamente com Marcelo Lazzaratto, diretor e mais que isso, um grande companheiro de vida e de palco, mergulhamos nesta pesquisa, entrevendo nas páginas desses autores trechos que iluminassem a "Loucura". Seis meses depois, em dois fins de semana, entre pilhas de livros e textos, conseguimos o esqueleto dramatúrgico da peça. Optamos por a peça acontecer em uma revolução solar, ou seja, um dia na vida deste "louco" que nunca nomeamos, ele apenas é. O que se tem no palco é um tablado branco e um ator. Um dia esse "louco" foi colocado neste espaço - seria uma cela? -  e ali é abastecido por livros, comida, um urinol para as necessidades fisiológicas e no momento de revolta uma camisa de força, claro. O que ele busca? Ele é um homem que avidamente se questiona, que purga suas dores através de palavras e circunstâncias alheias a ele. Nesse sentido podemos estabelecer uma relação desse louco com o trabalho de ator. Será que no ofício do ator, de algum modo não encontramos essa mesma busca? Importante salientar que durante o processo optamos por não fazer visitas a instituições psiquiátricas queríamos descobrir como a "loucura" em mim se manifestava.
Em 2001 estreou "Loucura" monólogo da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico. Como escreveu Alberto Guzik em sua crítica no jornal "O Estado de São Paulo": "Loucura é o mais verbal dos espetáculos físicos e o mais físico dos espetáculos da palavra". O que é apresentado ao público em 50 minutos é pulsão e potência dentro de uma partitura física rígida e desta colcha de retalhos textual elementos que indicam a fragmentação deste homem. Contabilizo no corpo pontos no queixo, uma artéria estourada no braço, calos, luxações. Muitas vezes sai do espetáculo absolutamente esgotado física e mentalmente. Este território exige visceralidade, exige o não poupar-se. Levei sim "o personagem pra cama", muitas noites de insônia, pesadelos, exaustão. Durante o período de ensaios muitas vezes fizemos três "gerais" e o terceiro era sempre o melhor, pois desta exaustão brotava a verdade deste homem, exausto por debater-se consigo mesmo. Eu era muito jovem na época, estreei "Loucura" com 23 anos, recém saído do Teatro-escola Célia Helena - onde me formei e onde hoje dou aula. Olhando a trajetória desde a estreia até hoje e contabilizando mais ou menos 150 apresentações, o espetáculo foi se modificando, mas se modificando por dentro, visto que as inquietações mudam, novas perguntas são feitas. Em "Loucura" não procuramos responder, dar um diagnóstico sobre o tema e sim dividir perguntas, propor questionamentos. Muitas vezes escutamos que o espetáculo deveria se chamar "Sanidade" e não "Loucura", exatamente por isso.


Gabriel Miziara é ator e diretor, membro da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico que ano que vem comemora dez anos de existência. "Loucura" foi seu primeiro monólogo.

Outro dia eu vi uma entrevista no Jô com aquela atriz que foi modelo. (Como é o nome dela? Não tem importância.) É uma que faz sempre e só novelas do mesmo autor, dirigidas pelo mesmo diretor. Essas novelas que têm homem sem camisa o tempo todo.
O negócio é que ela estava lá ridicularizando os cursos de teatro que fizera nos anos 70 nos States. E sacaneou com o Living Theatre! Logo o avô do teatro alternativo, o pai do off-broadway, uma das grandes invenções do teatro norte-americano no século XX (houve teatro americano antes do séc. XX?). Ficou um tempão fazendo piada dos exercícios, da pesquisa, das ferramentas de descoberta de uma nova cena, de um novo tipo de ator, mais corporal, por vezes mais visceral e talvez até menos técnico. Um ator criativo e, sobretudo, senhor da sua criação.
Então me lembrei da Judith Malina e do Julian Beck, fundadores do Living Theatre. A Judith Malina é a memorável vovó da "Família Adams I". E o Julian todo mundo conhece como aquela figura assustadoramente magra no "Poltergeist 2". Pois é... Eles revolucionaram o teatro e ficaram lembrados por esses dois filmes de segunda! São os mistérios da mediocridade, do lugar-comum, do esculacho que é a memória cultural de todo canto, em qualquer lugar.
Entre nós, é inevitável lembrar-se de nomes como o de Maria Alice, que ficou conhecida pelo grande público como a velhinha que andou dando uns tapas na Pantera! A Maria formou artistas, participou da montagem histórica do "Rei da Vela" no Oficina, fundou os dois núcleos do Teatro do Ornitorrinco, se apresentou por todo o mundo, fez cinema e até deu o ar da sua graça na TV. E fica reduzida a uma bizarra velinha maconheira!? Uma grande brincadeira, claro. Que ela só topou graças à sua confiança na juventude e nas novas ideias. À sua maravilhosa loucura sã!
Em sua autobiografia não-autorizada, Maria diz: "Os artistas tendem a intuir o futuro, deixam o inconsciente livre, permitem o vir-a-ser. Isso me torna aventureira, sabendo que ninguém é dono de uma única verdade, e eu deixo fluir a minha intuição, gozo com ela principalmente quando encontro um outro que também embarca nessa... Percebo nisso um caráter espontâneo de solidariedade. Tudo já foi dito de outras maneiras. A gente, no máximo, pode reorganizar aquilo que já foi expresso. Dessa forma poderemos sempre completar o que o outro começou. O "ser mestre" é a gente começar a perceber que nossa vivência é mais épica do que psicológica. O ator é um privilegiado. A vontade de ser ator é o desejo de se desprender. Quem estiver numa boa escola ou grupo de teatro não precisa fazer terapia."
É a mesma loucura que movia a Myriam Muniz. Um dia eu a vi, numa sala de aula, protagonizar uma das cenas mais fortes e delicadas que já presenciei no ensino do teatro. Ela colocou um jovem ator em pé e disse pra ele com a sua voz italianadamente rouca, de quem fumava e bebia uma boa cervejinha... Ela disse: "eu vou fazer uma coisa em você e você reage".
Daí ela pôs as mãos no peito do jovem e deu um empurrão. A reação dele foi apenas de afastamento. Ela deu um passo em direção a ele e deu outro empurrão. Novo afastamento. Isso se repetiu algumas vezes até que ela começou a bater o pé e o jovem começou a ficar acuado. Num dado momento, ele começou a correr em círculos e ela correndo atrás dele. Até que ela parou, virou-se e apenas esperou que ele viesse correndo até o seu encontro, completando o círculo. Nesse instante, diante do susto do aluno ao dar de cara com a mestra, ela o amparou e disse com a mesma voz, só que ternamente: "você só sabe fugir, né? Não precisa ter medo... isso aqui é só teatro... é tudo de brincadeirinha, bobo!"
Judith Malina, Maria Alice e Myriam Muniz... todas fundadoras, atrizes e diretoras de um teatro vivo, investigativo, instigante. Um teatro sem verdades absolutas, sem certezas. De onde brotam as dúvidas, de onde saem as respostas, de onde nascem as verdadeiras obras de arte e os grandes atores - e não a pasteurização dos enlatados.
É por essas e mais aquelas que prefiro não usar a palavra que arrepia - laboratório. Nunca usei. Sempre optei pelos termos pesquisa, investigação, experimentação. Um velho professor dizia mais ou menos assim: "nos anos 60 a gente fazia tanto laboratório... misturava os ingredientes, não anotava a fórmula nem as condições de experimentação... feito cientista maluco que, um dia, acaba mandando tudo pros ares!"


Gerson Steves tem 25 anos de atividades teatrais na cidade de São Paulo, tendo atuado como diretor, dramaturgo, ator, produtor e professor. Portanto, fez muita pesquisa na vida.

A peça ganha mais com a interferência do criador do texto, ou somente com a exploração do diretor e dos atores sobre o texto?

Sérgio Roveri

Tivesse eu o objetivo de atrair a ira de boa parte dos diretores brasileiros, eu começaria este pequeno artigo criando uma nova máxima: autor bom é autor vivo. Mas como respeito profundamente a classe dos diretores e tive o privilégio de me tornar amigo íntimo de quase todos com quem já trabalhei, me permito aqui uma pequena alteração nesta máxima recém-criada: autor bom também pode ser autor vivo. Ou vice-versa. Difícil é fazer com que alguns profissionais acreditem nisso.
Muito estranha a figura do autor. Ela parece incomodar não somente durante os ensaios, mas também ao longo da temporada. Como se nós, autores, fôssemos uma espécie de inspetor geral interessado no livro-caixa da companhia. Quando, na verdade, acredito eu, queremos ver apenas como é a voz, o corpo, a emoção e, principalmente, como se equilibram em pé todas aquelas personagens que, ao escaparem do nosso computador e da nossa impressora, não passavam de figuras chapadas em branco e preto. Se somos mesmos os pais biológicos de tantas histórias, penso que nosso acesso ao berçário deveria ser irrestrito. Porém, respeito as barreiras.
Assumo aqui que não sei dirigir. Não tenho uma visão cênica aprimorada, meu conhecimento de luz é primário, tenho uma queda, pequena, é verdade, mas ainda assim incontrolada para o melodrama e sinceramente não sei se conseguiria controlar um grupo de atores. Mais que isso: talvez eu já me sentisse satisfeito com a primeira visão do personagem que cada um deles me apresentasse. Por isso, minha admiração ao profissional que entende daquilo que eu não entendo: o diretor.
Mas existe uma sutileza que se encontra mais em poder do autor do que nas mãos do diretor e do elenco: é a sutileza da intenção, é aquela filigrana de emoção que parecia concentrada unicamente naquela palavra que o diretor resolveu cortar, é o silêncio entre uma frase e outra que, num primeiro momento, somente o autor é capaz de ouvir.
E então eu me pergunto: se é possível contar com esta ferramenta valiosíssima, que é a observação do autor, qual o sentido em desprezá-la? Não pareceria muito mais lógico e produtivo se, durante as leituras de mesa e, mais adiante, nos ensaios propriamente ditos, o elenco pudesse ter a chance de solicitar ao autor um hemograma completo dos seus personagens - ainda que os elementos oferecidos por ele fossem desprezados ao longo do processo? Imagino o imenso deleite que seria poder perguntar a Shakespeare se Hamlet é mais vítima de loucura ou de caprichos. Talvez não estejamos criando Hamlet, alguns podem argumentar, mas sabemos o que estamos criando. E andamos cada vez mais loucos para compartilhar este saber.
Entendo que o processo de direção pode ser tão solitário quanto o é, na maioria das vezes, o processo de escrita de um texto. Mas, o que eu defendo aqui, é a possibilidade de uma democratização nestas relações. Que cada um tenha o direito de mostrar o que sabe e o que tem de melhor. Quem ganha com isso não sou eu, os diretores ou o elenco. Quem ganha com isso é aquela pessoa desconhecida, que sai de casa, enfrenta filas e deixa alguns reais na bilheteria como um crédito de confiança em nosso trabalho. A ela, devemos tudo. O resto a gente resolve nas coxias.

Sérgio Roveri é jornalista e dramaturgo. É autor das peças Andaime, prêmio Funarte de Dramaturgia, e Abre as Asas Sobre Nós, prêmio Shell de autor. Duas peças de sua autoria estão em cartaz em São Paulo até o fim de julho: Dueto da Solidão, no Sesc Vila Mariana, e A Vida que eu Pedi, Adeus, no Teatro Cosipa.

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