A peça ganha mais com a interferência do criador do texto, ou somente com a exploração do diretor e dos atores sobre o texto?
Sérgio Roveri
Tivesse eu o objetivo de atrair a ira de boa parte dos diretores brasileiros, eu começaria este pequeno artigo criando uma nova máxima: autor bom é autor vivo. Mas como respeito profundamente a classe dos diretores e tive o privilégio de me tornar amigo íntimo de quase todos com quem já trabalhei, me permito aqui uma pequena alteração nesta máxima recém-criada: autor bom também pode ser autor vivo. Ou vice-versa. Difícil é fazer com que alguns profissionais acreditem nisso.
Muito estranha a figura do autor. Ela parece incomodar não somente durante os ensaios, mas também ao longo da temporada. Como se nós, autores, fôssemos uma espécie de inspetor geral interessado no livro-caixa da companhia. Quando, na verdade, acredito eu, queremos ver apenas como é a voz, o corpo, a emoção e, principalmente, como se equilibram em pé todas aquelas personagens que, ao escaparem do nosso computador e da nossa impressora, não passavam de figuras chapadas em branco e preto. Se somos mesmos os pais biológicos de tantas histórias, penso que nosso acesso ao berçário deveria ser irrestrito. Porém, respeito as barreiras.
Assumo aqui que não sei dirigir. Não tenho uma visão cênica aprimorada, meu conhecimento de luz é primário, tenho uma queda, pequena, é verdade, mas ainda assim incontrolada para o melodrama e sinceramente não sei se conseguiria controlar um grupo de atores. Mais que isso: talvez eu já me sentisse satisfeito com a primeira visão do personagem que cada um deles me apresentasse. Por isso, minha admiração ao profissional que entende daquilo que eu não entendo: o diretor.
Mas existe uma sutileza que se encontra mais em poder do autor do que nas mãos do diretor e do elenco: é a sutileza da intenção, é aquela filigrana de emoção que parecia concentrada unicamente naquela palavra que o diretor resolveu cortar, é o silêncio entre uma frase e outra que, num primeiro momento, somente o autor é capaz de ouvir.
E então eu me pergunto: se é possível contar com esta ferramenta valiosíssima, que é a observação do autor, qual o sentido em desprezá-la? Não pareceria muito mais lógico e produtivo se, durante as leituras de mesa e, mais adiante, nos ensaios propriamente ditos, o elenco pudesse ter a chance de solicitar ao autor um hemograma completo dos seus personagens - ainda que os elementos oferecidos por ele fossem desprezados ao longo do processo? Imagino o imenso deleite que seria poder perguntar a Shakespeare se Hamlet é mais vítima de loucura ou de caprichos. Talvez não estejamos criando Hamlet, alguns podem argumentar, mas sabemos o que estamos criando. E andamos cada vez mais loucos para compartilhar este saber.
Entendo que o processo de direção pode ser tão solitário quanto o é, na maioria das vezes, o processo de escrita de um texto. Mas, o que eu defendo aqui, é a possibilidade de uma democratização nestas relações. Que cada um tenha o direito de mostrar o que sabe e o que tem de melhor. Quem ganha com isso não sou eu, os diretores ou o elenco. Quem ganha com isso é aquela pessoa desconhecida, que sai de casa, enfrenta filas e deixa alguns reais na bilheteria como um crédito de confiança em nosso trabalho. A ela, devemos tudo. O resto a gente resolve nas coxias.
Sérgio Roveri é jornalista e dramaturgo. É autor das peças Andaime, prêmio Funarte de Dramaturgia, e Abre as Asas Sobre Nós, prêmio Shell de autor. Duas peças de sua autoria estão em cartaz em São Paulo até o fim de julho: Dueto da Solidão, no Sesc Vila Mariana, e A Vida que eu Pedi, Adeus, no Teatro Cosipa.