A arte de soltar a voz nos palcos da vida - Página dois

Índice de Artigos

RESPIRAR É FUNDAMENTAL
Respirar de forma correta é fundamental para o bom uso da voz. A respiração abdominal e intercostal são as melhores amigas dos cantores. Elas dão o apoio muscular que o aparelho respiratório precisa para garantir o melhor som possível e a melhor passagem de ar. Ao inspirar, abrimos as costelas e estufamos um pouco a barriga para fora, e, ao expirar, soltamos o ar e tentamos manter as costelas abertas, mas murchando a barriga para dentro, à medida que o ar sai. Esse é um dos exercícios de respiração mais eficazes. Porém, o ar e sua utilização é a parte mais complexa do canto e é necessário tempo para entender a coluna de ar usada para cantar.

VOZES IDENTIFICADAS
A identificação de uma voz é feita mediante a avaliação perceptiva de três categorias de parâmetros:
• Qualidade vocal - é a percepção que se tem das características qualitativas de uma voz específica
• Emissão vocal - é a percepção que se tem de como um som vocal está sendo produzido
• Expressão vocal - é a percepção que se tem de como a pessoa acrescenta subjetividade ao que é dito

DISFONIAS
As disfonias mais comuns são chamadas de fendas, fendas em ampulheta, irritação nas pregas por conta de refluxo, nódulos e cistos. Apesar dos nomes esquisitos, todas essas disfonias são curáveis, desde que com tratamento adequado (daí a importância de saber qual é o profissional com quem se trabalha pois, caso ele não saiba determinar o tipo de tratamento, pode gerar patologias mais sérias e mais difíceis de serem tratadas). Quem lida com voz tem que aprender sobre o tratamento de disfonias para não cometer erros e acabar destruindo uma voz por imperícia ou falta de conhecimento. Em casos de artistas com disfonia, o tratamento deve ser feito em conjunto com o fonoaudiólogo e com o preparador vocal para que o procedimento seja coeso e tenha sucesso.

Técnicas específicas
Óperas, musicais e peças de teatro. Quando a voz está bem cuidada, bem treinada e bem trabalhada, o dono da voz está no ponto para fazer bonito em qualquer uma destas áreas, certo? Errado. Pelo menos é o que garante Ester Elias, formada em Técnica de Canto Lírico e Popular pela Escola de Música de Brasília e em Fonoaudiologia, pela Universidade Estácio de Sá. Segundo Ester, o trabalho, além de diferenciado para quem atua em óperas, musicais ou peças teatrais, utiliza técnicas específicas, que exigem muito de cada profissional.
"O trabalho do cantor lírico ou da cantora exige mais do trato vocal. Pede mais técnica. A voz é predominante. No musical, tem que haver equilíbrio entre o lado cantor e ator. Ou seja, é preciso que o profissional seja bom cantor e bom ator. No teatro, o uso da voz é somente para a fala e isso requer muito cuidado e uma técnica específica para a voz falada", observa.
Ester recomenda alguns exercícios de respiração para facilitar o uso correto da voz, apesar de serem, ressalta, simples de entender como funcionam, mas complexos na hora de realizá-los. "Basicamente usa-se abdome, diafragma e músculos intercostais para se obter uma respiração básica. Mas é preciso participar de uma aula ou uma terapia vocal para melhor entender e praticar tais exercícios", diz.
São nestas aulas, segundo Ester, que todas as vozes podem ser melhor estudadas e trabalhadas. No mundo das artes há espaço para todas as vozes. "A que não tem como ser trabalhada é aquela que não é naturalmente afinada. Pode estar ligada a alguma resposta auditiva, ou seja, não compreende a nota que ouve e por isso não consegue reproduzir corretamente. Mas isso é especificamente para o canto", revela, acrescentando haver tratamento para solucionar quaisquer problemas vocais.
Para Ester, é possível, inclusive, se chegar à voz perfeita nas artes, o que, garante, não livra o dono da voz de estudo, aperfeiçoamento e orientação profissional. "A voz perfeita é aquela que já nasceu equilibrada em harmônicos e timbres agradáveis de serem ouvidos, mas a orientação de fonoaudiólogos e professores de canto, que tenham bom conhecimento de fisiologia e anatomia da voz, é fundamental", frisa Ester, que considera vozes perfeitas as do cantor Leonardo Neiva e da cantora Julie Andrews.
Quanto aos cuidados para se ter uma voz sempre bonita e saudável, Ester recomenda não fumar e beber, pelo menos, dois litros de água por dia. "A água mantém faringe e cordas vocais hidratadas", avisa. "Não falar fora de sua tecitura ou potência vocal, o que resulta num abuso vocal, também é importante", acrescenta Ester, que recomenda, ainda, comer maçã, "por se tratar de um bom adstringente, que limpa a voz e evita o famoso pigarro".
Já as famosas disfonias, segundo Ester, precisam ser tratadas antes de terem início aulas de canto. "Praticamente toda disfonia pode ser curada. Dependendo do seu grau, deve ser tratada só na terapia de voz, mas, às vezes, chega a ser necessária cirurgia. As mais comuns são por abuso vocal, alergias e até por questões emocionais", alerta Ester, que coleciona participações em importantes musicais como Os Miseráveis, Ópera do Malandro e A Noviça Rebelde, entre outros.

Ficou afônico, mas ganhou experiência
"Quando, por algum motivo, fico rouco ou afônico, sinto-me completamente aleijado". Pode parecer dramático, mas é assim que o cantor de ópera Murilo Neves, 31 anos, se vê quando seu instrumento de trabalho apresenta alguma avaria. "Fico assim porque é através da voz que eu transmito a minha arte", resume Murilo, que, em nove anos de carreira obteve sucesso e premiações, mas colecionou alguns contratempos, como quando, na véspera de uma apresentação, perdeu a voz.
"Fui a um otorrinolaringologista e ele me prescreveu, caso eu não melhorasse a tempo, injeção de cortisona. Acabei tomando-a e, de fato, minha voz voltou. Cantei a primeira parte do espetáculo com segurança, mas, no meio da noite, a voz acabou completamente. Como tinha que prosseguir no palco, acabei falando tudo, em vez de cantar. Aprendi que a gente tem que saber a hora de cancelar uma apresentação", revela Murilo.
O episódio, porém, mais do que fazê-lo ter o timing para cancelar uma apresentação, rendeu-lhe outros ensinamentos em relação aos cuidados com a voz. "É fundamental para o cantor de ópera o estudo constante e o treinamento diário. O cantor de ópera é como um atleta da voz. Se algum músculo perde o treino, a voz se ressente muito", diz o cantor, que faz aulas de canto diariamente e procura estar sempre agasalhado, além de não beber nada muito gelado ou muito quente.
"Mas sem paranoias, pois tenho que dominar minha voz. Acho péssimo me sentir dominado por ela. Observo que meus colegas mais paranóicos normalmente são os primeiros a ficar doentes. Há que se ter cuidados, mas sem histeria. Quem não tem resistência não pode cantar ópera", avalia Murilo, que estuda canto desde os 17 anos e já teve vários professores no Brasil - inclusive uma russa - e na Itália. "Vejo estudantes e professores se contentando com uma aula por semana, às vezes até menos. Isso não basta, não é suficiente. Ninguém aprende a cantar com uma aula por semana. Não largo a minha professora de jeito nenhum", revela Murilo, cuja estreia profissional aconteceu em 2000, na "Ópera dos Três Vinténs".
Desde então, o cantor já se apresentou por todo o Brasil e pôde não só mostrar o seu talento, mas detectar as deficiências de sua área no País. "Nós, brasileiros, temos um idioma que não favorece em nada a emissão para o canto lírico. Sentimos muito mais dificuldade em projetar a voz. A musicalidade e a sensibilidade são essenciais, mas observo que o que falta nos estudantes de canto brasileiros é a técnica mesmo. Existe muita confusão nesse quesito. Existe muito diletantismo. Vejo todos os dias professores inventando coisas, querendo descobrir a pólvora, confundindo muito mais a cabeça dos alunos do que esclarecendo", observa Murilo, que deixa um recado para quem deseja seguir a sua carreira: muito estudo.
"Infelizmente, não se pode comparar a segurança e o apuro técnico dos cantores líricos das décadas de 1950 e 1960 com os de hoje em dia. Numa era em que, mesmo no teatro falado, vemos peças encenadas em salas de 200, 300 lugares, por atores usando microfone, parece muito distante da realidade lutar no gogó com uma orquestra sinfônica completa", acrescenta Murilo, que acabou de voltar do Festival Amazonas de Ópera, onde cantou em três óperas e um recital de música de câmara - também faz trabalhos no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e participa regularmente do projeto Ópera no Bolso, da Prefeitura do Rio, onde cantou as óperas "La Cenerentola", "Les Pécheurs de Perles", "Don Pasquale" e "L´Italiana in Londra". Também já se apresentou em São Paulo, em Florianópolis, em Curitiba e em Blumenau.
O talento de Murilo é reconhecido pela professora de canto Amélia Gumes. Segundo ela, o trabalho de quem faz ópera é mais árduo, muscularmente e musicalmente, que todos os outros e exige muito mais tempo de estudo e dedicação. "Hoje em dia já se cobra muito mais a parte ator desses cantores do que antigamente, mas, ainda assim, o grande atrativo são os virtuosismos vocais que se ouve nessas obras. O trabalho em musical é muito direcionado e a música está mais ligada ao que o texto pede. Então todo o trabalho é em cima do ator e se usa a técnica para resolver alguns problemas que só o texto não corrige. Atores tradicionais de teatro puro trabalham a voz falada relacionada ao seu personagem e esse trabalho vem desde a pesquisa do personagem. O que diferencia um do outro é o ponto de partida em que a voz se torna importante e define todo o resto. Simplificando, é como se na ópera se definisse a voz primeiro, nos musicais as músicas definem a voz falada do personagem e no teatro o personagem define a sua própria voz", compara Amélia.

A voz de um expert
Um expert da voz. Assim pode ser definido o carioca Felipe Grinann, 35 anos, dublador, mas que já fez de tudo um pouco sobre o tema. Ator profissional desde 1995 - trabalhou na área teatral com Gabriel Vilela, Paulo de Moraes (Armazém Companhia de Teatro) e Cininha de Paula, entre outros diretores consagrados - e ex-backing vocal, durante dois anos, do cantor Milton Nascimento (no espetáculo Tambores de Minas), Felipe possui vasta experiência, também, na área de locução e dublagem. Ou seja, um currículo que o credencia a falar (aliás, gesto que ele faz até quase à exaustão diariamente) sobre a importância do uso da voz.
"Sou apaixonado pelo que o ser humano é capaz de fazer através da voz. Eu li que muitos monges tibetanos desenvolveram uma técnica para o canto, na qual numeroso grupo emite uma única nota, mas o que se ouve são muitas outras notas. É como se eles entrassem em sintonia com o som do Universo. Isso é fascinante!", diz Felipe, que gosta de exercitar as possibilidades da voz ao máximo, sempre disposto a achar um registro diferente, uma nova forma de falar os textos. "Assim como existem médicos que só cuidam do coração, escolhi me dedicar com mais profundidade à arte do ‘ator-vocal'. A minha maior satisfação é quando ouço alguém dizer: ‘Nossa, nem parece você!'", revela.
Tamanha dedicação levou Felipe a trocar, em 2008, o Rio de Janeiro por São Paulo, onde trabalha como dublador e locutor nas principais empresas paulistanas, além de professor de dublagem da Dubrasil, rotina que o obriga a estar sempre atento e cuidadoso com seu instrumento de trabalho. "Tomo muitos cuidados com a minha voz. Como preciso utilizá-la de uma forma sobre-humana, preciso estar com ela sempre descansada e pronta. Por isso evito tomar gelado, pegar chuva, dormir sem camisa... Tento dormir, no mínimo, sete horas por noite, jamais falo alto em boates ou lugares barulhentos, evito gritar, não fumo, bebo muito pouco álcool e muita água", enumera.
Uma mudança de hábito, porém, em prol da voz, o deixou um pouco triste. "Sempre li que a lactose costuma deixar uma espécie de muco nas cordas vocais e comecei a perceber que, coincidentemente, depois de ingerir os lactos, eu ficava pigarreando muito. Então cortei da minha vida o leite, os queijos e o iogurte. No começo, foi bem sacrificante, pois eu era viciado em comer queijo, mas substituí tudo por soja (que eu também gosto bastante) há quase um ano e a diferença tem sido grande. Hoje, sinto minha voz muito menos suscetível a intempéries, como mudança de clima, resfriados, gripes e alergias. Sinto-me, vocalmente, muito mais resistente", diz Felipe, que participa, desde 2001, de várias campanhas importantes em âmbito nacional (Jornal O Globo, Natura, Sprite, Renault, Embratel, Claro, Becel, Canal Futura, Sony Ericson - durante três anos, foi um dos locutores dos canais da Rede Telecine, através dos programas Cineview e Movie Box).
Dono de um vozeirão - apesar do 1,65 metro de altura - Felipe já deu voz, em português, às falas de Jude Law, Matt Dillon, Tom Cruise e Ewan MacGregor em filmes famosos como Moulin Rouge, Hulk, Madagascar, Tubarão e A Dama e o Vagabundo, mas não consegue escapar de uma situação, no mínimo, inusitada na vida real. "Minha voz é média-grave e condizente com a minha idade (35 anos), mas como eu tenho 1, 65 de altura e cara de 25 anos, toda vez que alguém me ouve em um filme ou apenas conversa comigo por telefone imagina que o dono da voz é um homenzarrão de 1,80, no mínimo! Quando finalmente me encontram, às vezes, nem conseguem esconder a carinha de decepção", brinca Felipe, que, como dublador, trabalhou durante 12 anos em todas as empresas do ramo, no Rio de Janeiro, e como professor de dublagem na Casa e Companhia de Artes Avancini, além de diretor de dublagem na Double Sound.