Dignidade regulamentada em lei

Por Felipe Sil

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Dignidade, honra, respeito... Direitos conquistados na base de muita luta e perseverança. Enquanto algumas profissões, como a de jornalista, ainda sofrem com processos conturbados de regulamentação, os "artistas e técnicos em espetáculos de diversões" comemoram, ainda hoje, a Lei nº 6.533, de 24 de maio de 1978, regulamentada pelo Decreto nº 82.385, de 05 de outubro do mesmo ano, que coordena e dá as diretrizes legais para a classe. Parece difícil imaginar, mas trabalhar com a arte, antes desse período, era quase como assinar um papel na sociedade de vagabundo ou prostituta. É graças à luta de dezenas de grandes nomes do teatro no passado que, hoje, aqueles que alegram, animam, dão esperanças e também fazem chorar têm seus direitos e benefícios garantidos na Constituição. Lei elogiada efusivamente por especialistas e estudiosos, ela respeita o que diferencia os artistas de um trabalhador comum: a capacidade de fazer emocionar.
Cada pessoa tem o poder e a capacidade de assumir um personagem e atuar em determinada cena. Carrega dentro de si um sonho de se transformar em outro alguém, talvez um melhor indivíduo ou um indivíduo mais feliz. Para cada profissão, porém, existe a necessidade de uma formação competente e séria. Atuar é uma arte, mas sem estudos, cursos técnicos e faculdades não se pode exercer o trabalho da melhor maneira possível. Lélia Abramo, Paulo Autran, Dercy Gonçalves, Nair Bello, Beth Pinho... Quando se iniciou a movimentação pela regularização e reconhecimento do trabalho de ator, em meados dos anos 1970, alguns dos maiores nomes do teatro brasileiro levantaram a voz para defender a classe. Era de se esperar. Afinal, os artistas não eram vistos pela população como verdadeiros profissionais e ficavam vulneráveis a pressões e decisões de cada novo governo autoritário, que tomava as rédeas do Brasil. Para se ter ideia, as mulheres que decidiam seguir essa carreira eram geralmente equiparadas às prostitutas. Chegavam a utilizar, inclusive, a mesma carteirinha de identificação.
Após uma luta árdua e inabalável - só assim para explicar o porquê da demora na aprovação da Lei 6533, em 1978 - que, finalmente, foram garantidas as habilitações de ator, de diretor e de cenógrafo. Desde então, para exercer a profissão, é obrigatório o registro profissional na DRT (Delegacia Regional do Trabalho). Paulo Autran, até o final da vida, queixava-se da demora na regularização, lembrando, inclusive, de outros países subdesenvolvidos no resto do mundo que também passam pelos mesmo problemas.
Tornar digna a profissão de artista: este é o principal benefício da lei, segundo Eugênio Santos, diretor da área de projetos do Sated-RJ (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado do Rio). Embora a classe seja admirada atualmente pela sociedade, em meados da década de 1920, quem escolhia essa carreira era tido como homossexual ou prostituta. "Lembro que a Dercy Gonçalves comentava, a todo momento, que tinha uma carteira de serviço que era a mesma usada por garotas de programa. Não existia glamour nenhum em ser ator ou atriz. As mães advertiam aos filhos para que nunca escolhessem essa profissão, pois era coisa de viado", comenta.
O ator Paulo Betti, que participou da luta pela regulamentação, quando ainda fazia parte do EAD-USP (Escola de Arte Dramática de São Paulo), em 1975, reforça os comentários dados pela saudosa Dercy. "Os artistas de teatro não eram reconhecidos como profissionais. O decreto regulamentou uma profissão e isso é muito importante, pois legitima e consagra. Afinal, o estudo faz do artista um melhor profissional. A preparação do ator não termina nunca. Ele precisa estar sempre pronto e atento. É uma profissão muito difícil, já que envolve dois componentes explosivos: vaidade e insegurança", avalia.

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Assembleias fundamentais
As melhorias propiciadas pela Lei nº 6.533, aliás, não se restringem ao aspecto moral. Pela questão da especificidade do trabalho de um ator, até 1978 os profissionais da classe não se sentiam amparados juridicamente pelas regras trabalhistas vigentes. "Não temos um horário comum como o de outros trabalhadores. Precisávamos que as leis dessem atenção a esse fato. Aquele foi um momento especial. Lutávamos não só pela regularização de nossas carreiras, mas por melhorias políticas, já que estávamos na época da ditadura. As assembleias dos sindicatos viviam lotadas e todos que tinham uma opinião formada iam lá jogar a sua", recorda, com carinho, Eugenio Santos, que também é ator e diretor de teatro.
Rosamaria Murtinho, atriz consagrada e atualmente em cartaz com o musical "Isaurinha - Samba, Jazz & Bossa Nova" , no Teatro João Caetano, foi uma das que mais lutaram pela regularização da profissão, nos anos 70. "Íamos sempre que podíamos a Brasília para realizar reuniões e debater o assunto com as autoridades da época. Não apenas eu, mas todos os grandes atores de então. A regularização é importantíssima não só quanto aos direitos trabalhistas, mas porque garante boa formação acadêmica, que é essencial para quem deseja seguir carreira. Não é qualquer um que começa a atuar e, sem mais nem menos, autodenomina-se ator. A pessoa precisa passar por uma provação. Uma faculdade ou um curso proporcionam mais conhecimento", diz.
Para a atriz, porém, a classe artística não tem conseguido apoio, atualmente, por parte do governo - mesmo após mais de 30 anos da regulamentação da profissão. "Não somos bem vistos pelo poder público. Sofremos pressões de governos autoritários, mas os dirigentes sempre frequentavam os teatros e entendiam de arte. Hoje nós somos vistos como polemistas por quem tem o poder e isso é uma prova de que muitos estigmas do passado ainda não foram superados", observa.
Eugenio Santos, por sua vez, ainda vê brechas na lei que precisam ser superadas. "Toda lei tende a perder sua validade com o passar do tempo. Acho que essa regulamentação de 1978 ainda é válida, mas, hoje, há outros aspectos que precisam ser considerados. O principal é em questão ao direito de imagem. Antigamente só tínhamos VHS e o cinema. Hoje é possível ver imagens e filmes em diversos meios, como celular, computador e por aí vai. A lei não é clara quanto a isso e o sindicato precisa se sentar para debater o assunto", revela.
O ator Ricardo Blat foi um dos primeiros a conseguir o registro profissional como ator, mais especificamente o 616º, em 25 de maio de 1979. "No Brasil, há muita gente se achando muito inspirada e muito ator querendo alcançar sucesso financeiro rápido. É importante ter talento, mas ter estudos para entender e saber as ferramentas necessárias para se usar na profissão. A escola é um bom lugar para se filtrar e se eliminar aproveitadores. Em uma boa escola, quem for aproveitador entenderá logo do que realmente trata essa profissão. O ator é aquele que liga o céu e a terra, um porta-voz dos seres humanos e um repórter dos sentimentos", declara.

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