Desapego. A lição principal da filosofia budista é uma constante na vida da atriz Lucélia Santos. Assim ela saiu de Santo André (SP), aos 15 anos, e foi estudar teatro no Rio de Janeiro com o mestre Eugênio Kusnet. Estreou na televisão protagonista de novela, vacinada contra o deslumbre. Arriscou o emprego sendo musa da esquerda dos anos 80. Foi fazer seu cinema na China e no Timor Leste, como produtora e documentarista.
Dona de um estilo visceral de interpretação que conquistou corações tão diferentes como os de Nelson Rodrigues e Fidel Castro, Lucélia explicita sua entrega a qualquer personagem, seja a mocinha ingênua ou a “bonitinha, mas ordinária”. “Não é uma atriz, é uma força da natureza”, foi a definição que Nelson encontrou para ela. Nessa entrevista descobrimos o porquê.
Jornal de Teatro: Qual foi seu primeiro contato com o teatro? O que daquele primeiro encantamento você ainda conserva?
Lucélia Santos: Foi assistindo a uma peça no SESC Anchieta de São Paulo com Marília Pêra, “A Moreninha”. Me apaixonei imediatamente e irreversivelmente. Estava com o pessoal do meu colégio. Fiquei paralisada e só pensei na paixão e desejo de fazer teatro!
JT: Como você conheceu o Eugênio Kusnet? Qual foi a importância de fazer o curso dele no começo da sua carreira?
LS: Conheci o Kusnet quando ele foi me assistir na peça “Dom Chicote Mula Manca e o seu fiel companheiro Zé Chupança”. Acredita que um monstro sagrado como ele ia ver teatro infantil? Ele foi convidado e compareceu! Ele foi fundamental na minha formação e continua importantíssimo na minha vida até hoje.
JT: Nos seus primeiros anos de Rio de Janeiro você atuou em dois musicais que eram a cara dos anos 70, “Godspell” e “Rock Horror Show”. Ambos tratavam de temas polêmicos na época (religião, sexualidade, desbunde). Como você se identificava com os textos que encenou? Como foi conviver com um elenco tão diverso, que ia desde atores iniciantes até ao Tom Zé?
LS: Foi uma fase maravilhosa de minha vida: Liberdade, sonho, confiança na profissão! Fé no Teatro e no trabalho do ator. Até hoje sinto todos esses valores bem fundos, bem marcados em mim...
JT: Logo depois você foi protagonista de novela. Pedindo perdão pela enésima pergunta sobre a “Escrava Isaura” que já te fizeram, mas como foi que isso afetou sua cabeça? Você teve algum deslumbramento?
LS: Nunca tive qualquer deslumbramento, nunca mesmo. Isso porque eu era uma atriz de Teatro formada por Eugênio Kusnet. No teatro a gente rala, não há lugar para deslumbrados, esse é um típico fenômeno televisivo e cinematográfico, onde as pessoas ficam fixadas na sua imagem e não nos personagens que representam.
JT: Você estrelou depois “Ciranda Cirandinha”, a primeira série voltada para o público jovem da televisão brasileira. Você disse algumas vezes, ser esse um dos trabalhos na TV que mais te agradou. O que fazia o Ciranda ser tão bom? Você acha que hoje há menos espaço para o experimental na TV?
LS: “Ciranda Cirandinha” foi um marco na linguagem na TV. Tinha uma direção genial do Daniel Filho e autores igualmente geniais como Domingos de Oliveira, Euclides Marinho e outros da sua grandeza. Era mesmo muito bom. Nós inventamos o naturalismo na representação na TV, aquilo tinha um sentido naquele programa, naquele momento. Depois foi adotado como estilo e usado às vezes equivocadamente pelos atores sem formação que fazem molinho pra ficar gostosinho (risos) Intenção zero! Sim, acho que há pouco espaço experimental para dramaturgia em TV hoje.
JT: Em 79, você protagonizou o musical “Lola Moreno”, uma homenagem à chanchada e ao teatro de revista. Como foi atuar com grandes nomes do gênero como Grande Otelo?
LS: Foi divino, maravilhoso, fantástico emocionante e principalmente porque foram convidados por mim, eu era a produtora do espetáculo
JT: Nas telas de cinema dos anos 80 você se converteu em musa de Nelson Rodrigues, estrelando “Engraçadinha”, “Bonitinha, mas ordinária”, “Álbum de Família”. Você se considera uma atriz rodrigueana? Como você vê a definição que Nelson lhe deu: “ela não é uma atriz, mas uma força da natureza”?
LS: Sim, eu sou uma atriz rodrigueana. Amo a obra de Nelson e poucos autores têm o vôo e a grandeza dele. Fazer Nelson faz parte da formação de um ator, eu acho. Quanto à citação dele. Não tenho qualquer controle sobre a mente, nem a dos outros, nem a minha mesma, quanto mais a do Nelson...
JT: Como foi o seu contato com o budismo e como você acha que isso influencia na sua maneira de interpretar?
LS: O Budismo mudou a minha vida, minha postura na vida, dada a sua profundidade. Quanto à maneira de interpretar, vem de encontro a minha crença de que o Teatro é algo ritualístico, ligado ao sagrado e dedicado em benefício dos seres, não sendo, portanto instrumento de exercício meramente do ego do ator ou dos criadores envolvidos. Quando atuo, e cada vez mais no Teatro, não o faço para brilhar individualmente, mas para colaborar e expressar um contato maior com quem assiste. Com o todo!
JT: Em 2002, para comemorar seus 30 anos de carreira, na exposição organizada por Aladim Miguel, você estreou a peça “Felizes da Vida”, sátira da burguesia da Barra da Tijuca que sonha com Miami. Qual sua opinião sobre essa parcela da classe média?
LS: Essa parcela da classe média acredita que felicidade é isso que os nossos personagens na peça acreditavam: dinheiro, carros maravilhosos, posição social, enfim, até que percebem que continuam muito infelizes, lutando loucamente por tudo isso, envelhecendo e perdendo cada vez mais no jogo. Eles sofrem muito, e muitos não percebem que é jogo, que é sonho, que é ilusão! E assim morrem...
JT: Como você avalia seus últimos trabalhos como produtora e diretora de cinema (O filme “Destino” e o documentário sobre o Timor Leste)? Tem planos para algum próximo projeto?
LS: Eu adoro o resultado de “Timor Lorosae” e tenho ainda grandes problemas a serem solucionados com minha última produção: “Destino”, o filme e a série. Estão para ser lançados e depois que isso ocorrer é que começarei novas produções em cinema, até lá estarei firme atuando no Teatro. Temos longa carreira pela frente com “As Traças da Paixão”, que já vem de São Paulo, Porto Alegre, agora do Rio pra Niterói, interior de São Paulo e Brasil. Estamos também começando a preparar uma nova produção juntos, Maurício Machado e eu, para darmos sequência a nossa parceria no palco que veio tão abençoada nas Traças.
JT: Como foi seu encontro com esse texto e o que mais te atraiu nele?
LS: Maurício tinha o texto que veio pelo próprio Alcides Nogueira, o autor da peça. Ele é apaixonado por essa peça, demorou cinco anos para realizá-la. Quando conseguiu, me convidou. Li, gostei e topei. O convite veio pelo Eduardo Figueiredo, sócio do Maurício na produtora.
JT: Marivalda e Paco são ao longo da peça: amantes, mãe e filho, e completos desconhecidos. Quase todas as facetas da relação de um homem com uma mulher. No duelo entre os dois mistura-se amor, ódio, verdades, mentiras. Você considera que a peça mudou sua maneira de encarar os relacionamentos (com filho, amigos, namorado)?
LS: Não sei. A peça é intensa e mexe com minhas emoções, eu sonho, principalmente no período de ensaios... Agora mudou sim em mim na maneira de encarar as emoções, mas ainda não consigo identificar o que, pois estou muito envolvida, quando terminar talvez fique mais claro!
JT: Marivalda é dona de um botequim e uma personagem bem popular e bem brasileira. Você acha que personagens como ela, estão em falta na nossa produção teatral atual?
LS:Acho sim e o que me agrada mais, na experiência com a peça é fazer Marivalda para público mais popular eles deliram com o humor da peça, enquanto que os intelectuais analisam e racionalizam, não conseguem se divertir, ficam tocados pela confusão. Nem percebem que se trata da confusão da sua própria mente, bem como na peça, um reflexo, uma projeção.