Edwin Luisi

Ele já foi Freud, Mozart e por pouco não foi médico. A náusea na primeira autópsia deu ao teatro brasileiro um de seus atores mais premiados. Edwin Luisi já levou pra casa o Shell, o Qualidade Brasil, o prêmio da APCA e outros. Comemora seus 40 anos de carreira com a peça “Tangos, boleros e cha, cha, cha”, sucesso do começo dos anos 2000, em que ele sobe no salto 15 para interpretar a transexual Lana Lee.

Por: Igor Miguel Pereira, redação de Brasília

Jornal de Teatro: Como um adolescente com certeza de que seria médico acabou virando ator?
Edwin Luisi: Como todo jovem eu tinha várias dúvidas sobre qual carreira seguir. Eu era atleta, fazia ginástica olímpica, mas sabia que não ia viver do esporte. Por uma questão de temperamento, eu quis a medicina, mas o desejo não resistiu à primeira autópsia. Me fez um mal terrível ver aquele corpo estendido na mesa... Então eu fiz um teste vocacional que apontou teatro como uma das opções. Fiz um curso, gostei, mas não prossegui. Entrei e saí de várias faculdades, sem decidir por nenhuma, até que eu consegui uma bolsa de intercâmbio pra estudar na França. Foi lá que eu me decidi pelo teatro...

JT: Como foi que essa viagem modificou sua cabeça na época?
EL: Eu cheguei na França em 68, então presenciei toda aquela efervescência da contracultura, das ruas, dos movimentos. Era uma variedade de sensações muito grande, num país que respirava teatro, mas ao mesmo tempo era tão hostil com o estrangeiro. A vontade de fazer arte ganhou força quando vi que eu conseguia viver com pouco dinheiro. Eu me sustentava com muito pouco, a bolsa de estudos e o que minha família mandava. Quando voltei ao Brasil eu ingressei fiz a prova pra EAD (Escola de Arte Dramática) da USP e passei.

JT: Sua estreia foi em “Ensaio Selvagem”, peça de José Vicente, encenada num bar. A peça tinha bem o clima underground dos anos 70, com narrativa descontinuada, frases incompletas, obscuras passagens em inglês. Fala um pouco sobre como foi essa experiência.
EL: Como quase tudo daquela época a peça era fruto de uma viagem de ácido. Era a história de uma atriz brasileira raptada por uma companhia de teatro inglesa, que vivia num trem. Lá ela sofria uma lobotomia e assumia a personalidade de Ataulpa, guerreiro indígena, seu último personagem. Eu fazia essa atriz e ganhei com a peça meu primeiro prêmio. O engraçado é que eu fui chamado pra fazer uns 20 dias antes da estreia e não entendi muito bem aquele texto. Como eu estava começando, tive vergonha de perguntar. Ganhei o prêmio sem saber o que estava fazendo.

JT: Sua chegada ao Rio foi com “A Margem da Vida”, peça de Tenesse Willians. Depois você fez Shakespeare, Sófocles, Tchekhov... Como é fazer personagens que são interpretados há décadas (ou mesmo há séculos) no mundo inteiro?
EL: Aqui no Brasil ainda se encena pouco essas obras, na Europa é comum você poder assistir duas ou três montagens simultâneas de “Antígona”, de “Hamlet”, na mesma cidade. E todas completamente diferentes. Eu costumo partir do nada. Pego o papel como qualquer outro. Uso as vezes um pouco de bagagem cultural pra entender o contexto da época, as entrelinhas das frases. E sigo muito a visão do diretor, porque ele é quem vai extrair o que aquela peça tem a dizer pro nosso tempo. Você pode fazer um Hamlet totalmente imerso em suas dúvidas, ou um vingador absoluto. Depende da intenção.

 

JT: Logo depois veio a televisão. Você foi par romântico da Lucélia Santos, em “Escrava Isaura” e matou Salomão Ayala em “O Astro”. Foram papéis de grande repercussão, que te deixaram conhecido no Brasil todo. Como isso afetou sua cabeça na época? Você esperava por isso quando começou a atuar?
EL: Eu não tinha a cultura da televisão, não tinha o costume de assistir. Aliás não tenho até hoje. Eu entrei sem ter muita noção do que era fazer novela, ter essa visibilidade toda. A violência do sucesso é muito grande. Claro que tem seu lado bom, você é paparicado, tem a chance de ganhar um bom dinheiro. Mas eu já tinha 29 anos na época, o caráter formado, não estava mais em idade de deslumbre.

 

JT: Há uma declaração sua sobre sua carreira na televisão. “Na TV, não tenho a mesma importância como no Teatro. Acho que eles ainda não descobriram o talento que estão perdendo.” Qual são as lacunas da sua relação com a televisão?
EL: Acho que eu fui me afastando e me afastaram por um desejo mutuo. Creio que as coisas aconteceram de uma maneira inconsciente. Havia certo desinteresse da minha parte que podia transparecer para quem trabalhava comigo. Isso influencia nos convites que você recebe. Mas hoje eu penso de modo diferente do que há dez, vinte anos atrás. Eu sei que um dia vai acontecer de fazer um grande personagem na televisão.

 

JT: Você interpretou Mozart em “Amadeus”, peça que ressaltava a infantilidade do gênio. A parte lúdica é frequente no seu processo de interpretação?
EL: A personalidade dele era assim. Ele era desagradável, pornofônico, falava palavrões infantis, “cocô”, “xixi”. Era uma criança mimada, sentava no colo das rainhas, das damas da corte. Foi um menino prodígio que nunca cresceu. Ele tinha uma personalidade totalmente distinta com o seu talento. E era isso que indignava o Salieri (compositor rival de Mozart), que dizia: “Meu Deus, como você pode ter dado a esse menino imundo um talento tão sublime.” E eu tenho um lado moleque bem forte. Quando eu fui fazer a peça, muita gente veio me falar que o personagem era a minha cara. E a parte lúdica é fundamental, não dá pra matar sua criança interior na arte. Tanto que o verbo pra interpretar em inglês (to play) e em francês (jouer) é sinônimo de brincar, jogar. A sociedade nos paga pra isso, pra mentir, iludir.

JT: Você encarnou mais de 20 personagens em “Eu sou minha própria mulher”. Sem sair de cena, com um único figurino e maquiagem. Você chegou a temer que essa façanha impressionasse tanto a plateia que ofuscasse a própria história da peça?
EL: Nunca me preocupei com isso, tudo que eu fiz na minha vida foi me equipar como ator para poder viver um momento como esse. E a peça foi concebida pra ser executada por um virtuoso. O autor, o diretor e o ator pra quem a peça foi escrita, que era um dublador com capacidade de fazer diversas vozes, se isolaram numa casa nas montanhas pra criar os personagens, com essa intenção. A peça pede isso. Quando ela foi montada na Argentina, o ator de lá teve exatamente esse temor que você falou. E ele optou por se apresentar de um modo mais discreto, com menos personagens. Eu assisti e senti que faltava alguma coisa. É uma peça escrita para um ator brilhar e poder mostrar todas as suas facetas. Se não, ela não funciona.

JT: Você trabalhou com inúmeros diretores consagrados Antunes Filho, Bibi Ferreira, Flávio Rangel. O que guarda de cada um deles? Direção faz parte dos seus planos?
EL: O que mais me marcou foi o Flávio, que fez três sucessos comigo e me pegou num momento muito importante: minha fase de formação como ator. Ele me ensinou muita coisa sobre o amor pelo teatro, o respeito com quem faz teatro, com a equipe. E não era uma coisa da gente aprender ao ver o Flávio fazendo. Ele falava disso como um bom professor. Muito do que eu sou como ator eu devo a ele. O Antunes impressionava, por ser de todos os diretores que eu trabalhei o mais inquieto. Ele tem essa insanidade do artista de um modo muito intenso. A Bibi tem uma vida de teatro tão vasta que qualquer coisa que ela fala é essencial. Em poucas palavras ela te leva a lugares insondáveis. É uma combinação de tempo, estudo e talento que faz com que ela sempre te peça as coisas de um modo muito preciso. Se ela dá qualquer orientação como: “dá dois passos, vira a cabeça pra esquerda e solta um ai”, você tem que seguir exatamente o que ela diz. Depois, quando você vê o resultado é impressionante.

 

JT: Poucos atores podem responder uma pergunta sobre a importância dos prêmios na carreira quanto você que já levou Shell, Qualidade Brasil, APCA... Afinal, o quanto um prêmio ajuda ao ator? E no quanto ele pode ser perigoso?
EL: O prêmio não atrapalha em nada. Ganhar um prêmio é ter seu trabalho reconhecido seja pelos críticos, pelos seus pares ou pelo público. Sempre que eu recebo dá um calor no coração, lembro da época em que eu estava começando, cheio de dúvidas sobre minha capacidade. Não sou eu que vou bancar o blasé e dizer que o prêmio não tem importância. Vale muito. Só não tem é valor de mercado.

 

JT: Você comemora seus 40 anos de carreira reapresentando “Tango, boleros e Cha, cha, cha”. Porque a escolha desta peça especificamente?
EL: Foram vários fatores. Era uma das únicas peças que eu poderia revisitar sem ter o problema da idade. Eu estava vindo de trabalhos bem densos e estava com vontade de fazer uma comédia. Mas não foi uma coisa assim planejada, acabou acontecendo. Eu tinha o sonho de remontar a peça, mas acaba adiando, porque é um trabalho que desgasta muito fisicamente. Eu sentia dores terríveis há dez anos, imagina hoje em dia. Aí apareceu o Patrick, ator e produtor se apaixonou pela peça em 2000, com um projeto para remontar o espetáculo. Coincidiu com a minha vontade e com a comemoração dos 40 anos da minha carreira. E se eu não fizesse agora, eu não faria mais. É um trabalho muito pesado, tenho que tomar remédio pra dormir por causa das dores.

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