Gerson Steves
Disse a um amigo que ia dirigir uma peça e ele perguntou do que falava. Eu não sabia direito. Perguntou o que eu queria dizer e eu também não sabia. Insistiu por saber se tinha uma historinha para interessar as pessoas. Essa resposta eu tinha: não.
– E como é que você quer que as pessoas se interessem pela peça?
– Nem sei se é uma peça!
– Se não é uma peça? Então o que é?
– Qualquer coisa... performance, dança, rap-cênico. Sei lá!
– Mas tem que ter algo pra manter o interesse. Para que as pessoas gostem, continuem sentadas e não mudem de canal...
– Mas é teatro! Não é o Caldeirão do Hulk ou o Fantástico ou Domingo Legal...
– Tem que ter um gancho!
Não é novela! Não tem segundo capítulo, nem patrocinador ou merchandising. Não tem que ter gancho! E pensei: “que merda, ele tem razão.” Mas não dei muita bola para esse pensamento. O problema é que o nome da peça chegou antes e não tenho fábula, conflito, dramaturgia, ordem dos acontecimentos, antecedentes da ação. Nada disso, só pensamentos. Insignificantes.
E acho que são insignificantes, mesmo! Porque eu sou insignificante. Não fiquei famoso, nem amigo de nenhum famoso com quem trabalhei. Nunca fui convidado pra nenhuma festa de famoso, nem nunca apareci em nenhuma revista de fofoca. O que eu digo sempre ficou restrito a espaços minúsculos como este e para poucos, como agora. Porque o que eu digo não é muito interessante... nem vai mudar o mundo, ou as pessoas à minha volta. As coisas que eu penso e falo interessam para poucos.
Acho que comecei a pensar insignificantemente quando me fizeram pela primeira vez uma pergunta meio idiota que todo mundo ouve: o que você quer ser quando crescer? Nossa vida depende de como respondemos a essa pergunta e de como a resposta é recebida.
Num mundo mais simples, uma criança em geral respondia os previsíveis: professora, bombeiro, médico, engenheiro, advogado. Algumas arriscavam ser piloto de avião, espião ou agente secreto... astronauta, cantora, atriz (não havia ainda as modalidades Maria-chuteira, atriz-modelo-apresentadora ou ex-BBB). Aos 6 anos, eu enchia a boca e respondia: coreógrafo! Os adultos riam e meu pai se arrepiava. Queria dançar. Via Fred Astaire e Gene Kelly nos musicais da Metro. Babava por Carmem Verônica e Íris Bruzzi nos especiais da Record, cercadas por um corpo de baile enorme, e tudo que eu queria era dançar! Fazer coisas bonitas como aquelas. Não sabia que eram cafonas de dar cárie, só achava bonito. E meu pai se arrepiava! Acho que pensava: prefiro um filho viado do que coreógrafo! E o que isso tem a ver com os pensamentos insignificantes? Tudo. Em que essa história muda alguma coisa? Nada! Portanto, ela é em si um pensamento insignificante.
E segue assim: pensando coisas que não tinham a menor importância, dizendo o que me vinha à cabeça e tudo sem a menor relevância, escrevendo esses pensamentos sem qualquer distinção. Dediquei anos escrevendo anúncios. Alguns considerados geniais. A pergunta é: por quem? Por gente insignificante, é a resposta.
Anúncios se baseiam em frases feitas, lugares-comuns e trocadilhos. Tudo que você tem que fazer é dar uma cara nova e acrescentar uma imagem aspiracional – que é tudo. É toda imagem que representa algo que não existe daquele jeito, nunca existiu e nunca vai existir; uma vida que todo mundo quer ter, mas nunca terá, num lugar que nunca haverá com gente que não existe. Tudo armado, pra convencer pessoas comuns de que podem ser incomuns. O layout também é importante, tem que ter apetite-appeal e, claro, não extrapolar o budget permanecendo fiel ao briefing.
Foi o que eu fiz por anos. Até lembrar o que queria ser quando crescesse e que meus pais, ou a vida ou sei lá quem conseguiram tirar da minha cabeça por algum tempo. E fiquei bastante infeliz... Estava gordo pra dançar. Virei ator.
Tem uma atriz que eu gosto muito. E ela faz muito sucesso. É uma senhora séria e adorável. Um dia eu a vi dar a seguinte declaração que era mais ou menos assim: “o que faço agrada porque eu sou uma pessoa mediana e todos os personagens que eu construo são medianos como eu, com angústias medianas e questões medianas, que acabam agradando à vizinha do lado...” Taí uma reflexão brilhante.
Sempre quis pensar coisas brilhantes e descobri que isso é pra poucos. Eu sou mesmo é mediano e insignificante, pra não dizer medíocre, como a maioria das pessoas que conheço. E meu pensamento, por decorrência, é pouco transformador. Meu trabalho não faz a menor diferença e o que produzo não vai entrar pra história. Até porque, no futuro, se houver, a história não se ocupará com o que criamos, pensamos ou construímos. A história futura, se houver, vai se ocupar em entender porque destruímos tanto e deixamos tanto lixo em nosso rastro.
Taí outra coisa insignificante em que eu penso: lixo. Porque a gente tem, compra, guarda, acumula muito lixo nas bolsas, gavetas e armários. Todos os dias a gente clama por lixo. Passo muito tempo pensando em lixo. Acho que é por isso que ainda não sei sobre o que vai ser minha peça, nem o que vou ser quando crescer.
Gerson Steves tem 25 anos de atividades teatrais na cidade de São Paulo,
tendo atuado como diretor, dramaturgo, ator, produtor e professor.
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Pensamentos insignificantes sobre o livre pensar
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