Por Daniel Pinton
A origem histórica do título de "sir" remete a quem possuía domínio sobre um feudo, sobre o mercado de escravos ou era apenas uma forma de agraciar algumas personalidades da nobreza e da realeza nos tempos medievais. Com a modernidade e o avanço social, o título passou a pertencer àqueles que dominavam um conhecimento específico sobre algum assunto. Foi assim, por exemplo, com o físico Sir Isaac Newton e com o cineasta Sir Charlie Chaplin. Mas a mesma regra não pode se aplicar a Sir Tom Stoppard. Muito além do papel de autor e dramaturgo, Stoppard oferece, desde 1958, quando começou a trabalhar como crítico teatral e colunista no Bristol Evening World (Inglaterra), trabalhos diversificados para reflexão histórica e antropológica, obras que repercutem e elevam o pensamento daqueles que puderam ser atingidos pelo seu furacão de ideias.
Para entender Stoppard e seu processo criativo é preciso voltar um pouco no tempo, mais precisamente 72 anos, idade completada por Stoppard dia 3 de julho. Nascido em 1937, na então Tchecoslováquia, presenciou sua terra ser invadida pelos nazistas e se mudou com dois anos de idade para Singapura. Mais uma invasão, mais uma mudança. Por conta da invasão japonesa à Singapura, foi com sua família para a Índia, onde recebeu educação inglesa e, enfim, se estabilizou. Mas logo se desestabilizou. Ainda bem. Aos 17 anos largou os estudos e começou a trabalhar em jornais, onde se envolveu finalmente com as artes, para sorte do grande público.
O escritor tcheco naturalizado inglês talvez seja mais conhecido no Brasil pela co-autoria, junto com Marc Norman, de "Shakespeare Apaixonado", blockbuster de 1998, vencedor de sete estatuetas do Oscar, incluindo melhor filme e melhor roteiro. Mas, muito antes, sua obra já havia encantado plateias em todo o mundo. Sua estreia no teatro foi em "Rosencrantz e Guilderstern estão Mortos", de 1966, na qual Stoppard se inspira em dois amigos de infância de Hamlet, onde o príncipe é aparentemente secundário e toda a história parece invertida: era o início da recorrente utilização de personagens historicamente menores e de metalinguística teatral. Sua consagração, porém, veio com a montagem da trilogia "A Fronteira da Utopia" (The Coast of Utopia), em 2002. A história, com vários intelectuais e revolucionários russos, passa a mensagem que a História nada mais é do que uma ironia em movimento a peça rendeu a Stoppard sete prêmios Tony - o Oscar do teatro.
No Brasil seu trabalho passou a ser mais conhecido e reconhecido a partir de sua participação na edição de 2008 da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). No evento, onde foi a principal atração, Stoppard falou, com mediação de Luis Fernando Veríssimo, sobre o processo criativo de suas principais peças, principalmente "Rock'n Roll", de 2006, espetáculo que se passa durante a emergência do movimento democrático no leste europeu, pouco depois de eclodir a Primavera de Praga, chegando à Revolução de Veludo, sob a perspectiva dos defensores da liberdade e do proletariado.
No embalo da vinda do escritor ao Brasil, o diretor Caetano Vilella se movimenta para encenar, a partir de outubro, "Travesties", obra de 1974 de Stoppard. A peça é uma paródia do livro A importância de ser Prudente, de Oscar Wilde. "Eu queria um autor contemporâneo que falasse do papel do artista na sociedade e tivesse o viés político. Aí, caiu no Tom Stoppard. Conheci o "Travesties" e vi que tinha muito sobre o que eu queria falar, então fui atrás. Ele queria me conhecer para saber qual seria a minha leitura da peça, pois, segundo ele, "Travesties" é o texto dele mais difícil de se traduzir. Tivemos um encontro no Aeroporto de Cumbica e nossa conversa durou quatro horas. Ele gostou e aprovou a minha proposta, falou que eu estava no caminho certo e me deu total liberdade. O medo de Stoppard era de a peça ter um viés mais comercial, ele não quer isso. Ele foi muito acessível, fiquei até sem graça. Não existe muito isso no teatro de o autor antes de ceder os direitos querer te conhecer olho no olho, ainda mais partindo de um autor do porte dele. Após isso, trocamos correspondência por duas ou três vezes e o meu tradutor, Marco Antônio Pâmio, foi a Londres se encontrar com ele para resolver os últimos detalhes", conta Villela.
O tradutor da peça, Marco Antônio Pâmio, que também é ator, destaca o desafio que foi traduzir o texto mais difícil de Stoppard. "O "Travesties" é muito verborrágico, ele mistura, em uma mesma obra, vários planos narrativos. Como é uma peça que se passa na cabeça de um personagem, há flashes de memória num jogo de ida e vinda misturando três planos históricos reais. Você tem que ter domínio de assuntos e eventos diversos para tornar viável a montagem desse quebra-cabeça na cabeça da plateia. Stoppard coloca tudo isso em um calderão com bastante sentido e lógica, porém, exige bastante atenção da plateia, do leitor", diz.
Pâmio lembra que teve de interromper seu trabalho diversas vezes para estudar a fundo os assuntos tratados e poder entender o que traduzia. "Travesties" é uma peça muito concentrada em conteúdo. Geralmente levo um ou dois meses para um trabalho de tradução e acabei levando sete, oito meses porque houve momentos em que tive que parar tudo para estudar. Fui elucidando um monte de elementos quase como charadas para aquilo ter sentido na tradução. Stoppard brinca muito com a linguagem, ela é muito atrevida. Ele faz um jogo de metáforas, sonoridades no inglês, que para o tradutor é bastante desafiador", explica Pâmio. O encontro com Stoppard foi, segundo ele, imprescindível para que a tradução da peça fosse feita sem tirar o seu sentido original. Para a surpresa do tradutor, o escritor inglês se mostrou inteiramente solícito e aberto a tirar dúvidas comuns se tratando de um texto teatral metalinguístico. "Fui me encontrar com ele em janeiro deste ano. Ele é uma criatura adorável, uma pessoa de simplicidade no convívio. Ele foi digníssimo, solícito, sem qualquer ponta de esnobismo. Fomos ao teatro, tomamos um café e ele teve total disponibilidade para elucidar, discutir qualquer dúvida que eu tivesse no texto. O tempo que ele dedicou a mim foi algo que ele nem precisaria fazer, mas ele ficou bastante impressionado com alguém de fora da Inglaterra fazendo sua obra considerada a mais difícil", diz.
Fica a dica do Jornal de Teatro para aqueles que já conhecem a obra de Sir Tom Stoppard e, principalmente, àqueles que ainda não tiveram a oportunidade de entrar em contato com o universo de reflexão daquele que é hoje em dia não "apenas" um dos maiores dramaturgos ainda vivos, mas também um iluminista contemporâneo. Um homem que, apesar de não ter um e-mail e sequer ter paciência para digitar em um computador, desenvolve em suas obras um espírito jovem-contestador incapaz de datar seu trabalho cada vez mais atemporal.
Biografia teatral (nomes originais):
1966: Rosencrantz & Guildenstern
Are Dead
1968: Enter a Free Man
1968: The Real Inspector Hound
1970: After Magritte
1972: Jumpers
1972: Artist Descending a Staircase
1973: Born Yesterday
1974: Travesties
1976: Dirty Linen and
New-Found-Land
1977: Every Good Boy
Deserves Favour
1978: Night and Day
1979: Dogg's Hamlet,
Cahoot's Macbeth
1979: 15-Minute Hamlet
1979: Undiscovered Country
1981: On the Razzle
1982: The Real Thing
1984: Rough Crossing
1986: Dalliance
1988: Hapgood
1993: Arcadia
1995: Indian Ink
1997: The Invention of Love
2002: The Coast of Utopia
2004: Enrico IV
2006: Rock'n Roll