As perucas, apliques e acessórios para os cabelos estão presentes em quase toda produção teatral. Seja ela de grande ou pequeno porte, com orçamento limitado ou não, é praticamente indispensável a utilização desses objetos de indumentária no processo de caracterização dos personagens e na ambientação do espetáculo. No teatro lírico, por exemplo, existe um setor especialmente para cuidar deste importante item: a perucaria. E o profissional responsável por esta área, conhecido como peruqueiro, precisa estar atento às novidades para se adequar aos orçamentos sem prejudicar a qualidade da apresentação. Por conta disso, ele estuda o roteiro, faz pesquisas e, em parceria com o figurinista, confecciona as perucas de acordo com o que está sendo produzido. Um trabalho técnico e dispendioso, mas essencial a qualquer ópera, balé e musical de sucesso.
O uso moderno de perucas começou na França de Luiz XIII, mas a origem do artefato se deu em civilizações mais antigas. No século IV a.C, mulheres gregas já usavam apliques de cabelos artificiais. E no teatro? “Se consideramos as cerimônias religiosas como formas embrionárias da atividade teatral, encontramos a peruca na cabeça de reis e sacerdotes egípcios na execução de ritos sagrados e, na Grécia, em procissões ao Deus Dioniso (não confundir com os históricos Dionísios)”, explica Maria Sutter, professora e coordenadora da área de letras clássicas da PUC - Rio.
No Brasil, as perucas chegaram à sociedade com a corte portuguesa e no teatro com as primeiras companhias europeias, que se apresentavam no País como a Comedy Francese. Na década de 1970, a peruca viveu o seu momento de maior popularidade. Era a moda do momento e a maioria das mulheres queria ter a sua. Nos anos 1980, caiu em declínio e, atualmente, passa por uma fase de revitalização. Seja de fibras vegetais, crinas de cavalos, fios de lã, cabelos naturais ou fios sintéticos, elas sempre ressurgem como um recurso válido tanto na vida particular como no palco.
A argentina Divina Lujan Soares é peruqueira do Teatro Municipal do Rio de Janeiro há 31 anos. Diz que perdeu as contas de quantas perucas já produziu, mas não a paixão por confeccioná-las e a necessidade de estar envolvida no processo de evolução da indumentária. “Já fiz perucas até com botões”, garante. Formada pelo Instituto do famoso Teatro Cólon de Buenos Aires, fundado em 1908 e o primeiro do gênero na América do Sul, Divina “fez a cabeça” de célebres personagens das mais importantes óperas e balés apresentados no Municipal nas últimas três décadas como “Turando”, “Aida” e “La Traviata” (dirigido pelo cineasta e cenógrafo italiano Franco Zefirelli). Ainda estão no currículo de Divina alguns trabalhos em produções importantes do cinema nacional como “Carlota Joaquina”, de Carla Camuratti, e da televisão, na minissérie “Os Maias”, da Rede Globo. Também integra a equipe da carnavalesca Rosa Magalhães, sendo responsável por inovações na maneira de produzir perucas para o carnaval carioca.
Segundo Divina, quando ela chegou ao Brasil, a perucaria não existia no Teatro Municipal. “Eu montei o setor e ensinei durante esses anos vários assistentes. Muitos trabalham hoje em televisão, no carnaval e no teatro”, diz. Neste tempo também, houve uma evolução desta técnica no Brasil. “Quando cheguei ao Municipal já havia trazido muita coisa, mas tinha a dificuldade para se achar boa matéria-prima. Hoje conseguimos cabelos de qualidade aqui no País. A troca de experiências com produções de fora também contribuiu para aprendermos mais sobre o universo das perucas”, acredita.
Divina explica que há uma grande diferença entre uma peruca para teatro e as chamadas perucas sociais, usadas fora dos palcos. “São completamente diferentes. As perucas sociais são feitas com elástico para se adequarem a qualquer pessoa e a peruca teatral é confeccionada sob medida, exclusivamente para determinado ator, considerando as suas características de acordo com a maquiagem e o figurino. Tudo tem que estar combinando”, ressalta.
Com orçamentos muitas vezes apertados e em tempos de responsabilidade ambiental e econômica, é natural que o reaproveitamento dos materiais seja necessário. “Atualmente temos cerca de 30 dias para deixar tudo pronto. Tudo depende do material disponível, da matéria-prima que será usada, do orçamento. Gosto de inovar, usar materiais diferentes. Já fiz perucas com botões, borracha...”, diz. Segundo Divina, todas as perucas se reaproveitam. “Elas duram bastante, dependendo de como são guardadas e os cuidados que se tem na utilização. O suor, por exemplo, queima o brilho natural do cabelo. Eu preservo muito bem as perucas do Municipal. Lavo, embalo e guardo para outras produções. Mas é importante comprar cabelo de qualidade para as perucas. Isso ajuda muito”, finaliza.
No currículo “La Traviata” com Zefirelli
Dos 100 anos que o Teatro Municipal do Rio de Janeiro completa agora em 2009, a peruqueira argentina Divina Lujan Soares participou ativamente deles nos últimos 30. Sem perder o sotaque portenho, nestas três décadas à frente do setor de perucaria no teatro carioca, Divina acumula muitas histórias. Nesta conversa com o Jornal de Teatro, ela fala da importância do teatro e das perucas em sua vida e da experiência única de ter trabalhado com o italiano Franco Zefirelli no Brasil.
JT - Quando o teatro entrou na sua vida? E as perucas?
Divina - Eles entraram praticamente juntos. Eu trabalhava como cabeleireira na Argentina e sempre gostei muito de cabelos. Estudava e pesquisava sobre eles. Eu queria mais e decidi me preparar para entrar no Instituto do Teatro Colón, que é um teatro lírico muito conhecido. Fui aprovada e estudei história da arte e várias áreas dos bastidores como caracterização, iluminação, indumentária e, é claro, perucaria. Foi quando eu aprendi a diferenciar os tipos de peruca, as formas de costurar, pentear, arrumar. Também dei aulas e trabalhei em publicidade.
JT - Como chegou ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro?
Divina - Eu tive a sorte de ficar trabalhando no Teatro Colón depois de formada. Foram dois anos adquirindo experiência e contatos. Em 78, surgiu o convite do Hugo de Ana, que na época era o diretor artístico do Teatro Municipal, para que eu e mais outros profissionais argentinos viéssemos para o Brasil fazer parte da chamada Central Técnica de Produção. O Municipal estava sendo reaberto depois de três anos em reformas de modernização. Vieram ótimos profissionais para cada setor do teatro e o objetivo era formar uma escola de teatro aqui. De acordo com o contrato, ficaríamos por seis meses apenas. Sou a única daquele grupo que está até hoje.
JT - Qual era a realidade do Municipal quando vocês chegaram?
Divina - Não havia muita coisa. Até a nossa chegada existia muito pouco conhecimento nessas áreas. Começou conosco. O teatro ficou fechado pois estava degradado. Eram feitos apenas shows e bailes de carnaval. Iniciamos muitos profissionais aqui.
JT - Quantas perucas chega a fazer numa produção?
Divina - Varia muito. Já fiz mais de 500.
JT - Já presenciou atores confundirem e trocarem de peruca em plena apresentação?
Divina - Acontece muito deles colocarem de trás para frente. É muito difícil ter um solista que goste de usar peruca. Eles reclamam, dizem que esquentam demais. Eles preferem deixar o cabelo de acordo com o personagem. O bailarino até gosta de usar, mas por dançar muito ele perde a peruca. Já vi uma peruca voar em pleno balé e o ator era careca. Não teve jeito, a platéia disparou a rir.
JT - Com tantas produções e trabalhos no currículo, quais você classifica como inesquecíveis?
Divina - Trabalhar com Franco Zefirelli foi um momento único. Por tudo que ele representa e me ensinou. Ele é uma pessoa ótima e simpática, porém muito severa. Conhece muito sobre cabelos. E ele nos ajudava pessoalmente e deu muitas dicas. Passamos 20 dias dentro do teatro montando o espetáculo “Traviata” e convivendo com ele.