Rodrigoh Bueno
Em um abril de outros tempos, mais precisamente e não por acaso no dia 21, estreava no Rio de Janeiro o musical “Liberdade, liberdade”, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel.
Em um abril de outros tempos, mais precisamente e não por acaso no dia 21, estreava no Rio de Janeiro o musical “Liberdade, liberdade”, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel.
O ano era 1965 e a tensão causada pelo golpe militar do ano anterior assombrava a classe artística, que sentia o reflexo da repressão.
Para demonstrar a insatisfação, dois grupos que já exploravam o gênero chamado “teatro de protesto”, o paulista Teatro de Arena e o carioca Opinião, acabaram produzindo o espetáculo considerado a obra pioneira do teatro de resistência no Brasil. O texto de “Liberdade, liberdade” é atual em qualquer época, pois reúne a visão de pensadores de diferentes períodos e contextos, sobre o tal “direito inalienável”.
O elenco que estreou a peça era composto por quatro atores, o já renomado na época Paulo Autran, Oduvaldo Vianna Filho, Nara Leão – que vinha do elogiado espetáculo “Opinião”, e Tereza Rachel, todos revezando os 56 papéis existentes na peça. A direção musical era de Oscar Castro Neves e contava com o violão de Roberto Nascimento, Ico Castro Neves no contrabaixo, Francisco Araújo na bateria e Carlos Guimarães na flauta.
Desde o momento em que o texto chegou à censura causou polêmica, pois apesar de conter um forte discurso político de oposição ao regime militar, possuía citações de Platão, Sócrates, Abraham Lincoln, Martin Luther King, Shakespeare e até mesmo Jesus Cristo. Esse foi apenas o ponto de partida para a série de polêmicas que o grupo enfrentaria até o final da temporada. Aliás, enfrentados com muito humor.
No ensaio final, o ranger das cadeiras da plateia incomodou os produtores e Millôr Fernandes encontrou uma forma de resolver a questão, inserindo no texto o trecho a seguir.
“ E aqui, antes de continuar este espetáculo, é necessário que façamos uma advertência a todos e a cada um. Neste momento, achamos fundamental que cada um tome uma posição definida. Sem que cada um tome uma posição definida, não é possível continuarmos. É fundamental que cada um tome uma posição, seja para a esquerda, seja para a direita. Admitimos mesmo que alguns tomem uma posição neutra, fiquem de braços cruzados. Mas é preciso que cada um, uma vez tomada sua posição, fique nela. Pois companheiros, as cadeiras do teatro rangem muito e ninguém ouve nada”.
A estreia
Quando os extremistas de direita souberam que o espetáculo estrearia no dia que representa a morte de um dos principais heróis nacionais, Tiradentes, trataram de preparar suas manifestações – a principal delas foi a pichação na fachada do teatro. Aliás, durante todo o tempo em que o espetáculo esteve em cartaz, as manifestações também estiveram presentes, não sendo raro que manifestantes freqüentassem o teatro armados, e que a peça fosse interrompida com gritos de protesto. A situação quase chegou a um limite quando cerca de 50 pessoas pertencentes a um grupo radical de direita tentou depredar o teatro, conforme publicado no jornal Tribuna da Imprensa. Ao mesmo tempo em que aumentavam os protestos, aumentava a simpatia do público e crítica pelo espetáculo.
A crítica
Yan Michalski, do Jornal do Brasil, dedicou quase metade de sua crítica abordando a interpretação de Paulo Autran e diz que “a versatilidade demonstrada por Paulo Autran é impressionante: em duas horas de espetáculo ele esboça umas dez ou quinze composições diferentes, sempre adequadas e inteligentes, sempre livres de quaisquer recursos de gosto fácil”. Tereza Raquel também foi bastante elogiada, mas a jornalista considerou que “o charme e a musicalidade de Nara não deixam de estar presentes, mas a sua voz frágil e as marcações estéticas que lhe foram reservadas fazem com que a sua participação resulte bastante apagada” – informação contrariada pelos demais críticos da época.
Sem dúvida a crítica que causou maior polêmica foi a do jornal New York Times, em 25 de abril de 1965. “Os espetáculos teatrais que elevam a voz com protestos políticos contra o regime semimilitar do Brasil estão produzindo, no país, bom entretenimento e uma nova visão dramática (...) Paulo Autran, o astro principal entre os quatro intérpretes que representam no palco vazio, pronuncia, sob a luz de um único spotlight, a última palavra da peça: Resisto! A audiência de trezentas pessoas, que tinham pago o equivalente a um dólar e vinte e cinco centavos por pessoa para sentar amontoada, levantou-se e aplaudiu vibrantemente. (...) Contudo, o que parecia conquistar a audiência era o fato da irada mensagem da peça vir temperada com humor, música e um otimismo ansioso com respeito ao futuro do Brasil..”
Terminada a temporada carioca, apenas Paulo Autran seguiu no elenco principal, sendo aplaudido principalmente em teatros improvisados e universidades.
No roteiro da turnê estavam cidades que dificilmente recebiam a visita de grandes produções, o que causava ansiedade e desconfiança na população.
A cidade gaúcha de Pelotas, por exemplo, viu um jornalista ser proibido de publicar matérias de teatro após elogiar a peça. Em seguida, o mesmo jornal apresentou um editorial sob o título de “Palhaçada, palhaçada”.
A repressão também não deu trégua durante a turnê. O sucesso em todo o Brasil chegou aos ouvidos do alto escalão governamental e, no dia 2 de junho de 1965, o presidente Castello Branco enviou uma nota a seu sucessor, Costa e Silva, afirmando que as ameaças de “Liberdade, liberdade” eram de aterrorizar a liberdade de opinião.
A partir daí, carros de polícia passaram a intimidar o público que comparecia ao teatro e as ameaças de bomba se tornaram ainda maiores. Em 1966, a liberdade foi oficialmente (e nacionalmente) proibida pela Censura Federal.
Já no fim da apresentação, o trecho: “como detalhe pessoal e final, os autores e todos os participantes do espetáculo declaram que raras vezes trabalharam com tanta alegria. Se com as vozes que levantaram do silêncio da História conseguiram gravar o som da Liberdade num só dos corações presentes, estão pagos e gratos”.