Afinal, são 36 anos de sucesso dedicados aos palcos. Mas Jussara é despudorada. Foi dessa forma, jogando para escanteio qualquer tipo de declaração politicamente correta, que a atriz abriu seu coração para o Jornal de Teatro e, com a mesma intensidade que declarou seu amor pelo palco, disparou contra a maioria da nova geração de atores, contra o panorama atual da nossa televisão, contra a banalização do ser humano... Tudo isso em favor da sinceridade. Com vocês, a verdade latente de Jussara Freire que, sem papas na língua, ainda falou da era das celebridades, de teatro, da TV de ontem e de hoje, da sua relação com o ex-marido e companheiro de cena Marcos Caruso, do seu espetáculo em cartaz “As Pontes de Madison”, dos projetos futuros e avisa: “Eu quero fazer tudo”.
Jornal de Teatro – Como e quando foi o seu primeiro contato com o teatro?
Jussara Freire – A primeira peça que assisti na vida foi “Morte e Vida Severina”, na época de escola. Quando vi aquilo, achei o máximo, me encantei e falei: “É isso que eu quero ser!”. Em seguida, ajudei a formar um grupo de teatro amador que, naquela época, servia para a gente aprender sobre teatro, não para trabalhar na televisão como é hoje em dia. Como eu sou uma mulher nascida em 1951, fui forjada no meio da ditadura e claro que, com a minha pouca idade, achava que poderia fazer alguma coisa para sair daquele inferno. O ator fala alguma coisa e passa alguma coisa. Olha só como o teatro é rico!
JT – E como foi a reação da sua família?
JF – Como eu comecei em 1973, minha família não achou muito legal, pois pensava que era um trabalho que não dava futuro. Em 1973 você podia ser médica, engenheira, advogada, secretária, mas atriz, não, pois era uma coisa meio esquisita. Mas os meus pais nunca foram tão contra assim, achavam só que era algo que não dava futuro. Quando fiz minha primeira novela eles começaram a compreender que a vida de ator não era aquela bagunça que eles imaginavam. Na verdade, até hoje as pessoas acham que o ator é muito volúvel, faz o que quer. Não é assim. Tem uns malucos, tem gente que acha que para ser artista precisa ser transgressor, mas é uma profissão como qualquer outra. Poderia ter escolhido ser engenheira, médica ou advogada, mas preferi ser atriz. Para mim é uma opção de vida.
JT – Como você enxerga a nova geração?
JF – Acho cada vez pior. Temos talentos que surgem, mas, hoje em dia, infelizmente, as pessoas querem aparecer, ter seus 15 minutos de fama. Um sequestrador chama a imprensa para aparecer porque, provavelmente, alguém fará uma história da vida dele. Acho que está muito ruim. Nossa profissão tem muito paraquedista que não sabe o que fala, o que faz. Está lá para ir em festa, para aparecer na revista “Caras”, naquelas fotografias 3 x 4, para ser convidado para inauguração de shopping, da caneta Bic... Eles acham que isso é ser ator. E não é. Ser ator é uma coisa muito séria. A safra de novos atores está cada vez mais fraquinha e as meninas e os meninos que realmente possuem talento não estão tendo chance, porque, infelizmente, você, hoje em dia, tem que ir para a televisão para depois fazer teatro. Atualmente, as pessoas perguntam para você: “Como eu faço para ser ator? Mas é para trabalhar na televisão.” As pessoas não querem ser atores, querem ser artistas de televisão, querem os tais 15 minutos de fama.
JT – Está muito diferente da época em que você começou?
JF – Antigamente era o contrário: você ia do teatro para a televisão. As pessoas, para conseguirem um lugar ao sol na televisão, têm que ter o biotipo da televisão, ou seja, rostinho bonitinho para vender sabonete. E não é assim a vida. Quando eu comecei na televisão meus mestres foram Laura Cardoso, Márcia Real, Rodolfo Mayer e, quando não tinha gravação, eu, mesmo assim, ia aos estúdios para ver esse pessoal trabalhar. Não havia essa anticultura que existe hoje. Fico muito triste quando vejo notícias de pessoas que participaram de reality shows e viraram famosos, com exceção de uma ou outra pessoa, como a Juliana Alves e a Grazi Massafera, muito aplicadas. Conto nos dedos essas celebridades que caem na profissão e dão certo. Hoje qualquer um quer ser ator e não é assim. Eu não posso ser médica amanhã, tenho que estudar. Até para fazer unha ou limpar uma casa tem que se ter prática e parece que, para ser ator, não. Aí, fazem qualquer cursinho de dois meses, vão para a televisão e, em dois minutos, conseguem o DRT (registro do ator na Delegacia Regional do Trabalho) – nosso sindicato também fecha muito os olhos para isso, o que acho uma pena. Você acaba tendo que, cada vez mais, brigar pela profissão, pelo seu espaço. Só pode fazer teatro de sexta-feira a domingo e ainda fica pedindo a Deus que tenha público.
JT – Você quer dizer então que está difícil fazer teatro?
JF – Hoje em dia está muito difícil. Quem faz teatro não sobrevive do teatro. O teatro é caro para quem vai assistir e pouco rentável para quem faz: paga-se muito em aluguel, em luz, em um monte de coisa. Tem muita gente que investia em teatro antigamente e não tem mais vontade de investir. Tem um amigo meu, que não vou revelar o nome, que, mesmo com todos esses problemas, quer investir em teatro, quer ser produtor, conseguiu um teatro muito bom e interessante, mas os donos do teatro falaram assim: “Só negociamos se tiver alguém da Globo”. Não dá para entender. Tinha meu nome, mas eu não estou na Globo agora. As pessoas ainda associam talento com televisão e não é isso.
JT – Com toda esta dificuldade, muitos novos talentos podem estar sendo ceifados, não acha?
JF – Talentos imperdíveis. Talentos que, de repente, acabarão fazendo outras coisas porque precisam comer, pagar as contas. Isso ceifa mesmo. É esta palavra mesmo: são ceifados. Se você não tem nome, não tem visibilidade, não consegue ser ator. E se você não consegue ser ator, não consegue visibilidade, então, faz televisão. É uma pena, porque eu sei que tem gente muito boa que teima em fazer teatro e não consegue.
JT – Diante desse panorama, você pensa, então, em dar prioridade aos trabalhos na TV?
JF – Eu não fechei com a Record porque eles queriam que eu fizesse teatro só até dezembro. Me ofereceram um bom contrato, de quatro anos, um ótimo salário, mas com a cláusula de que eu não poderia fazer teatro e ficasse em “As Pontes de Madison” só até dezembro. E se nos próximos quatro anos surgir uma peça maravilhosa? Achei um absurdo. Fui para a Record porque a Globo estava um pouquinho chata nesse ponto, mas agora trocou. Pode ser também um caso pessoal, não sei. O argumento deles é que não daria tempo para fazer uma peça e uma novela ao mesmo tempo. De maneira nenhuma eu vejo como isso poderia afetar, mas acontece que a televisão, hoje em dia, está meio desorganizada, às vezes não consegue conciliar a produção com a presença do ator. Só porque você tem contrato eles acham que têm exclusividade sobre você 24 horas e não é bem assim.
JT – O fazer novela está mais difícil também?
JF – Se você parar para olhar na televisão é difícil se identificar com as pessoas que estão lá. São todos meio robotizados, com o mesmo corte de cabelo, com a mesma maquiagem, o mesmo peso, tudo igual. Meninas lindas estão ficando secas, arreganhadas, o que não é o tipo do brasileiro. Está todo mundo ficando louro também. Fazem luzes e têm o sotaque carioca (provocação bem humorada ao entrevistador). Por exemplo, essa última novela que fiz (“Chamas da Vida”), eu não gostava de fazer. Não gosto muito de enfocar a desgraça. É muito tiro, muita droga, muito sexo, muita maldade, muita explosão e isso me enche um pouco o saco porque, de repente, não se precisa de ator, mas de dublê. São mais novelas de ação do que de interpretação.
JT – Esse esteriótipo que você descreveu dos atores de novela não se encaixa ao seu perfil. Incomoda?
JF – Sou muito despudorada em tudo que faço. Quero é ser uma pessoa possível. Não sou um estereótipo de beleza: sou uma mulher de 58 anos que está de bem com a vida. Não faço essa linha “qual é a minha dieta para emagrecer quatro quilos em uma semana”. E aí tem uma coisa que estou achando muito interessante: no teatro: as pessoas se comovem tanto com a personagem porque elas estão olhando uma mulher de 58 anos que é possível. Posso estar um pouquinho acima do peso para os padrões de televisão, mas as pessoas acham tão possível aquela mulher, aquele homem que é alto e magro (Marcos Caruso), que se identificam.
JT – Falando do seu início no teatro, você mencionou a época da ditadura como algo que, de certa forma, impulsionou sua carreira. Você acha que anda faltando mais espetáculos de contestação?
JF – Falta contestação gostosa. Não adianta subir ao palco e falar um monte de coisas para calar a boca. Não é isso, não adianta. Por exemplo, as pessoas acham que o teatro do Marcelo Médici é simplesmente uma comédia, eu não acho. Os textos dele são de uma crueldade, de um dedo na ferida, que, à primeira vista, até não parece, a gente morre de rir, mas, de repente, revisando, você vê como tudo é muito cruel, como todas as personagens dele são absolutamente verdadeiras, só que revestidas do riso, e isso é muito legal. Você liga para quantos morreram no Iraque, no Irã, no Afeganistão? Tudo foi banalizado. O ser humano tem o terrível hábito de banalizar qualquer coisa. O Rio de Janeiro nesta guerra civíl, São Paulo nesta bagunça que está... A pizza, a bomba e o sequestro estão no mesmo nível. Banalizou o erotismo, o sexo, o amor, a dor: ficou tudo tábua rasa. Eu não sou pessimista, sou de muito bom humor, só que, quando tenho oportunidade de falar exatamente aquilo que penso, acho maravilhoso. Não posso deixar de ter certeza, nunca, que sou formadora de opinião. Que mesmo que eu tenha três fãs no mundo, tenho responsabilidade sobre esses três fãs. Se eu falar que eu gosto de amarelo, infelizmente, eles vão querer usar amarelo para o resto da vida. Então, tenho que tomar muito cuidado com a minha vida particular e falar aquilo que eu penso de verdade mesmo. Não posso mentir.
JT – Falando em comédia, você sempre se destacou, seja na TV, seja no teatro, com personagens cômicos. Fazer rir é um desafio para você?
JF – Uma atriz que faz comédia é uma coisa muito difícil. Você aprende a falar inglês, alemão e até aramaico, mas não aprende a contar uma piada. Comédia é mais difícil de fazer. Só atores bons de comédia têm a pitada certa para o drama. Fazer comédia fina, requintada, é muito difícil. Se eu contar uma história muito triste da minha vida para você, você vai ouvir em silêncio e vai até chorar. Agora, tirar uma risada de uma pessoa, principalmente nos dias em que estamos vivendo, é muito difícil. Ser ator é um dom. Se o ator ainda por cima tem o dom da comédia é uma dádiva.
JT – Como e quando foi que você e o Caruso se encontraram pela primeira vez?
JF – Foi em nosso primeiro grande fracasso. A gente se conheceu em um fracasso chamado “Peri e Ceci”. Era um pseudo-musical horrível, onde ele fazia um fidalgo português e eu uma índia. O figurinista me botou de índia americana. Era um horror, era tudo ruim. Mas, graças a esse trabalho, a gente teve a felicidade de se encontrar e viver um lindo casamento de 20 anos. E deu mais do que certo. Estamos há mais de 15 anos separados, mas somos sócios indissolúveis: temos um filho maravilhoso (Caetano Caruso).
JT – E como tem sido dividir o palco com o Caruso nessa peça que vocês estão em cartaz, “As Pontes de Madison”?
JF – As pessoas acham lindo, tipo: “Oh, que bonito os dois trabalhando juntos... é tão romântico...”. “As Pontes de Madison” é um dos sucessos de São Paulo. As pessoas acham encantador ex-marido e ex-mulher trabalhando, o que, para nós, é algo absolutamente comum. Se tivéssemos brigado, tivesse tido aquelas coisas que a gente vê que dá polícia, aí, talvez, não teríamos essa parceria, essa cumplicidade, essa intimidade de teatro.
JT – Como o público está reagindo à peça?
JF – O homem sai aos prantos, muito homem chorando. Deve ser muito engraçado porque, se o homem chora, a mulher vai perguntar, chegando em casa, se ele teve algum caso de amor não resolvido. As pessoas se comovem muito. Quando acaba o espetáculo, as pessoas descem para cumprimentar a gente de tanto que eles querem continuar aquela emoção que estão sentindo. A resposta é uma coisa maravilhosa e eu já percebi que há senhorinhas e gente jovem gostando. Para amar não importa a idade.
JT – É mais fácil dividir a cena com um ex-marido de 20 anos?
JF – Aí é que está... Não sei se sou diferente das outras pessoas, mas, para mim, é a mesma coisa. Não consegui me sentir em nenhum momento inibida. Acho que pode até, no inconsciente, ter ajudado alguma coisa. Mas, se fosse outro ator, eu teria o mesmo empenho, a mesma satisfação em estar fazendo aquilo. Olho para aquele homem e percebo a história de amor. Aprendi uma coisa maravilhosa: não devo representar, mas atuar. Representar qualquer um pode, agora atuar é deixar a personagem entrar em você, aí é outra coisa. Quando eu estou no palco não é que esteja tomada pela personagem, mas estou tão focada naquela história que poderia ser qualquer um. Que bom que é o Caruso, porque ele é um excelente ator, um grande amigo, um grande parceiro, um grande dramaturgo e um grande diretor – o que faz com que todas as observações dele sejam válidas. Tem uma química.
JT – Quem mais tem essa química artística com você?
JF – Por exemplo, quando fiz uma novela chamada “Cabocla”, eu e o Otávio Augusto tínhamos uma química incrível, era uma maravilha. Trabalhar com o Otávio Augusto foi um presente também. E a química não é só com homem. Com a Irene Ravache, em “Inseparáveis”, eram maravilhosos o nosso clima, a nossa química, a nossa cumplicidade em cena, era fantástico.
JT – Você acredita em paixões avassaladoras? Já se viu como a Francesca?
JF – Acredito sim. Como a Francesca não, mas acredito que possa acontecer sim. Não é nem paixão, é um amor avassalador porque ela optou pela família, mas aquele amor continuou, tanto que ela deixou três diários para os filhos verem, o que é um herança de caráter com o seu modo de ver a vida. Foram quatro dias só, mas esses quatro dias para a Francesca foram absolutamente marcos históricos. Então, acredito, sim, que você pode amar com todas as forças do seu coração, de repente, por quatro dias. Não que depois você não vá continuar feliz com a vida que você tem, mas você encontra contentamento naquela pessoa.
JT – Já tem projetos futuros encaminhados?
JF – Se Record, Globo ou SBT me chamarem e eu achar interessante, eu vou, desde que que eu possa fazer teatro. Não sou atriz de televisão, não sou atriz de cinema, não sou atriz de teatro. Sou atriz. Por melhor salário que me ofereçam, não posso abdicar da honra e do privilégio de subir ao palco. Todo ator gosta mais do teatro. Você tem tempo de saborear cada palavra no ensaio e cada dia você descobre uma coisa nova. É muito interessante esse processo no teatro. A televisão, hoje, está um pouco pizza, tem que fazer depressa porque, quando é uma novela inédita, o autor não entregou o texto e aí dá uma embolada no meio-de-campo e você fica sem saber o que vai fazer na semana. Nessa última novela que fiz era assim: eu não sabia o que iria fazer no dia seguinte. Mesmo quando o autor entregava o texto com antecedência, a produção se enrolava. Atualmente o teatro é o meu meio preferido e eu não quero ficar restrita a nada na minha vida, como uma boa aquariana, graças a Deus. Não me restrinja, pelo amor de Deus, porque acho que envelhecer é restringir as suas ações. Sou multifacetada. Se eu estiver fazendo e vir que o pique físico não está dando, aí eu faço uma opção, mas, quero fazer tudo.