Caio F. um autor que o teatro não esquece




Por Rodolfo Lima, especial para o Jornal de Teatro

(...) e acreditávamos que um dia seríamos grandes, embora aos poucos fossem nos bastando miúdas alegrias cotidianas que não repartíamos, medrosos que um ridicularizasse a modéstia do outro, pois queríamos ser épicos heróicos românticos descabelados suicidas, porque era duro lá fora fingir que éramos pessoas como as outras(...) Caio F.. - (“Visita”)
A relação do teatro com Caio Fernando Abreu é antiga. Mais precisamente do ano de 1976, quando, junto com Luiz Arthur Nunes, estreou “Sarau das 9 às 11”. Nunes, no prefácio da edição esgotada – relançada agora pela Editora Agir com supervisão de Marcos Breda – do “Teatro Completo de Caio Fernando Abreu”, afirma que, desde o final dos anos 1960, o escritor já estava envolvido com os atores gaúchos. O autor chegou a excursionar por cidades do Rio Grande do Sul, atuando na peça “Serafim-fim-fim” de Carlos Meceni.
Embora menos conhecida, a faceta dramaturga do Caio teve seu reconhecimento em 1988, quando dividiu com Nunes o Prêmio Molière de melhor autor do ano, pela peça “A Maldição do Vale Negro”. A edição lançada em 1996 – nove meses após sua morte – traz sete peças e um punhado de cenas avulsas, como frisou o autor do prefácio. Entre as quais se tornaram conhecidas estão “Pode ser que seja só o leiteiro lá fora” (Prêmio Serviço Nacional do Teatro), “O Homem e a Mancha” (que viria a ser montado em 1996 pelo amigo e ator Marcos Breda), “Zona Contaminada” e a sua adaptação do romance “Reunião de Familia”, de Lya Luft, dirigida por outro amigo, no caso o diretor gaúcho Luciano Alabarse.
Caio Fernando Loureiro de Abreu nasceu dia 12 de setembro em Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul – quase fronteira com a Argentina. Sua carreira como escritor começou a ganhar projeção quando um conto seu, “O Príncipe Sapo”, foi publicado na Revista Claudia, em 1966. Caio estava com 18 anos e já guardava na gaveta “Limite Branco”, seu primeiro romance. Escritor, jornalista, cronista, tradutor, crítico, roteirista, dramaturgo, esotérico e jardineiro estão entre as facetas que o autor exerceu durante os 48 anos que viveu “andando pelo mundo, prestando atenção em cores que não sabia o nome (...) divertindo gente, chorando ao telefone” – parafraseando a música “Esquadros” de Adriana Calcanhoto, uma de suas musas.
A vida literária de Caio ficará para uma próxima resenha. Mas é bom frisar que o autor sempre rejeitou rótulos, enquadramentos e definições definitivas sobre seu trabalho. “Eu não tenho opinião definitiva sobre nada. Não acho que isso seja insegurança.. Acho que é abertura. Tudo é passível de uma outra interpretação”, escreveu certa vez. Vou me ater aqui – brevemente – na relação estabelecida entre Caio, o teatro e o fascínio que a obra de Abreu exerceu e continua exercendo sobre os atores.
Os amigos foram os primeiros responsáveis em dar visibilidade à obra de Caio nos palcos. Além de Alabarse, Nunes e Breda, acrescente Gilberto Gawronski, Grace Gianoukas (“Sobre o Amor e Amizade”) e Nara Keiserman (“(Eu) Caio – Jogo Teatral”). A relação de Gawronski com os textos do Caio rendeu diversas encenações: “Pode ser que seja só o leiteiro lá fora” (1983), “Uma Estória de Borboletas” (1991), “A beira do mar aberto”, “A Dama da Noite” (1997), “Do outro lado da tarde” (1998) e “Uma visita ao fim do mundo – um estudo cênico” (2006). Natural que quando os amigos pessoais esgotassem a necessidade de viver as personagens do Caio, anônimos assumissem a dura tarefa de levar adiante projetos teatrais a partir da obra do autor.
Numa conversa pelo telefone com Jorge Cabral, cunhado do autor e representante legal da sua obra, a representatividade do teatro em relação à obra do Caio é pequena. Sempre o procuram para que liberem os direitos dos textos, mas não acredita que seja o teatro a mola propulsora para alavancar a memória do artista. “Não acho que o teatro seja o responsável por sustentar viva a obra do Caio. Ele tem um público cativo que o lê. O fato de ter conseguido que a obra dele fosse relançada pela editora Agir ajudou. Nesses cinco anos que o Caio ficou sumido – logo após sua morte, foi esquecido. Suas obras em edições novas trouxeram visibilidade, agregada aos dez anos de seu falecimento, que ocasionou algumas homenagens. O teatro tem sua parte, mas não é fundamental”, reforça Cabral.

MOSTRA CAIO F.
Eis aí onde se encaixou a Mostra Cênica Caio F., primeira mostra paulista que reuniu trabalhos concebidos a partir da obra do gaúcho, morto há 13 anos, e mostrou que o teatro nunca o esqueceu. Montagens espalhadas por vários cantos do País, exercícios cênicos em final de curso, teses de mestrado e doutorado por todo o canto – ano passado participei de dois eventos na UNESP, onde cerca de dez alunos estudavam sua obra – fazem com que a memória de Caio permaneça viva. A mostra foi um recorte bem modesto das dezenas de encenações que existem.
Em parceria com o Casarão do Belvedere, produzi uma programação de terça-feira à sábado durante os meses de maio e junho deste ano. “Acho importante falar do Caio hoje, porque tudo que ele aborda é contemporâneo e você sempre se identifica com algo. E a forma como ele fala destas questões atuais é muito poética. A poesia é algo que está se perdendo. Portanto, seus textos me encantam e dizê-los é uma forma poética de resgatar essa valorização da palavra. Suas palavras têm cor e imagens. Ele nos toca magistralmente. As imagens sugeridas pelo Caio não são vistas como banais, despertam o belo na rotina, no óbvio”, comenta Ivania Davi, que participou na mostra como diretora (“Réquiem para um rapaz triste”) e atriz (“Epifanias”).
A Cia. Teatro Íntimo trouxe o monólogo “Os Dragões” pela primeira vez a São Paulo. Sobre o esforço de fazer todo o trajeto sem apoio financeiro, Fernanda Boechat – atriz do monólogo em questão – comenta: “Não acho que essa devoção seja especifica do Caio. Mas é um excelente exemplo dessa paixão. Esse tipo de projeto que entramos sem nenhum recurso financeiro é relacionado com uma necessidade pessoal do grupo. Uma das coisas mais bonitas que o Caio deixou foi essa possibilidade de se apaixonar pelos seus textos. O texto dos dragões é uma necessidade dentro de mim e vai me acompanhar independentemente do meu estado no momento. O sentimento da paixão resume isso.”
Thiago Kozonoi, responsável pela direção de “Pode ser que seja...” fala sobre a possibilidade dos textos do autor serem datados. “Caio não fala de uma época especifica. Ele aponta. Os personagens são intelectualizados, tem uma postura hippie, mas é uma escolha deles. Todos os personagens trazem sua própria visão de mundo. É mais humana do que situacional. O legal é a contradição que há entre eles, com argumentos distintos e complexos”.
Para a mostra, Paulo Goya – o responsável pelo Casarão – concebeu sua versão para “O dia que Júpiter encontrou Saturno”, conto da fase mística do autor, presentes no livro “Morangos Mofados”. “Confesso que conhecia o Caio como leitor, mas não era apaixonado pela obra dele. Quando, em 2008, vi a montagem do “leiteiro”, eu fiquei surpreso. Eu acreditava que era uma obra datada, viva mais datada, e descobri que havia no texto uma contemporaneidade de estilo e temática.
A fragmentação das relações amorosas, o fim das utopias, a impossibilidade do amor, a solidão desenfreada e os vícios cotidianos, a eterna espera pelo outro, a loucura do dia-a-dia, a homossexualidade, o misticismo, a religiosidade, sua relação com as flores, com o vírus HIV e a urbanidade de seus contos e personagens estão presentes na obra do autor e muito bem representados nos espetáculos.
Os textos expostos na mostra nada mais foram do que um recorte singular da vasta obra do autor. Caio se tornou um homem de teatro e seu amor por atores e pelo palco é reverenciado a cada montagem que estreia anualmente em algum canto do Brasil.
Reunir todos seria um sonho impossível. Uma segunda edição da mostra já me inquieta, pois possibilitaria ver outros textos encenados, outras propostas e outros sotaques para as personagens do Caio. Autor, esse envolvido sempre com os problemas do homem, no que os fazem semelhantes – independentemente do que os separam fisicamente – e nas questões internas cada vez mais minadas pelo mundo exterior. “Tenho escrito principalmente sobre esse nosso tempo (...) para desvendar camadas ocultas e mais profundas da realidade e do ser humano até a fronteira da miséria e da loucura (...) E como tudo está mudando, e como eu próprio estou mudando e como é inevitável que as coisas sejam mutações constantes, metamorfoses incessantes, meu trabalho sempre mudará (...) Literatura é também meu jeito pessoal de ajudar a derrubar as prateleiras para preparar um novo mundo”, observou Caio numa entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo em 7 de novembro de 1977.
Pouca coisa mudou nas angústias do homem? Vivo me perguntando. Trinta e dois anos após a entrevista a voz de Caio permanece ressoando. Uma casa para um homem que nunca teve seu próprio imóvel parece pouco. Axé (como escreveu Caio em algumas de suas cartas).
*Rodolfo Lima é jornalista e ator. Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

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