Juliana (nome fictício) não pôde estar presente ao enterro do seu irmão mais velho e nunca se perdoou por isso. Por mais de 10 anos, um sentimento de culpa e solidão a corroeu por dentro, levando para longe a tranquilidade de uma mente já inquieta. Só mais de uma década depois, a paciente esquizofrênica da terapeuta de família e casal, Isabel Rosana Barbosa, pôde chorar sua perda e, finalmente, enterrar o irmão perdido. Foi no palco dramático, cercado por entes queridos interpretados por colegas de terapia e se despedindo de um caixão ilusório que Juliana se sentiu livre para colocar sua dor para fora.
A loucura sempre foi tema de filmes, livros e personagens históricos. Grandes artistas sempre estiveram no limiar entre os devaneios e a realidade do mundo que os cercam, em especial quando mergulham em personagens com carga dramártica pesada. Foi o que aconteceu com o ator baiano Ângelo Flávio na pele do ‘aprendiz de marginal', Tonho, vivido no longametragem de Paulo Alcântara, "Estranhos". "O cheiro de pólvora impregnou minha mão por muito mais tempo do que qualquer um imaginaria", relembra.
Ao contrário do que se esperava, o apagar das luzes não suprimiu a dor do malandro Tonho, nem a arrancou do peito do ator. "Construí no Tonho um típico malandro brasileiro, mas também dei a ele hombridade e assassinar a garotinha acabou com ele e comigo também. Ficamos os dois muito mal por muito tempo", revela.
Segundo Ângelo Flávio, é impossível construir um personagem denso sem ter a aura imaculada pela realidade interpretada. "É muito difícil viver sem aprender com os personagens. Isso, porque, para construir personagens completos, abrimos mão dos nossos princípios morais e culturais, e não há como fazer isso e sairmos ilesos. Nesse processo, nós sofremos, aprendemos e nos humanizamos", concluiu.
E nesse jogo de vida e arte, personagens ilusórios se misturam àqueles reais no intuito de emocionar, construir e deformar a nossa realidade. Foi assim que Ângelo Flávio trabalhou durante muitos anos no Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, acompanhando o grupo de apoio psicossocial Gira Mundo e vivendo um pouco da loucura de cada um dos internos como forma de se aproximar deles. É assim que a professora e membro do Conselho Baiano de Psicodrama, Isabel Rosana, trabalha até hoje as pessoas que têm na realidade do dia-a-dia seu maior medo de viver.
Defensora da técnica desenvolvida pelo médico romeno Jacobo Levy Moreno para o tratamento de pacientes com os mais variados tipos de problemas psicossociais, Isabel Rosana explica que oferece uma proposta terapêutica, de tratamento. "Você não interpreta uma modalidade teatral, e sim, a sua vida. E isso faz toda diferença. Digo isso, porque, ao interpretar a própria vida, você leva toda a carga de emoção que viveu para aquele momento e isso vai te ajudar a trabalhar questões que estão dentro de você, te machucando", explica.
De acordo com a profissional, o psicodrama possibilita ao paciente a entrega total a emoções reprimidas. Durante as sessões, divididas em aquecimento, dramatização e comentários, a assustadora realidade é enfrentada com o apoio de profissionais. "A sala é chamada de palco dramático. Nela, surge o protagonista. Por exemplo, na terapia de grupo ou no grupo de várias pessoas, alguém leva um tema de alguma situação que esteja vivendo e esse tema é levado para ser representado no palco dramático", revela.
Diferente do teatro, que leva ao palco a vida dos outros, o texto feito por um autor no psicodrama se leva aos palcos a própria vida. Segundo Isabel, o psicodrama não é só dramatização, mas a base para outras técnicas que se chamam técnicas de ação. "Quando eu falo ‘ir ao palco dramatizar', não necessariamente seja uma utilização de uma historinha, mas podemos utilizar outros recursos para que o protagonista possa trazer a sua história e possa ser tratada", revela Isabel Rosana.
Segundo a profissional, ao dramatizar a própria vida, o paciente leva para o palco algo que já fez. "Por exemplo, você tem uma relação difícil com sua mãe, então o terapeuta pede para que você entre em cena e dramatize isso. Ao interpretar situações e sensações do cotidiano, você se dá conta do seu próprio personagem naquele contexto", detalha.
É quando o paciente, finalmente, se dá conta das próprias ações, das formas como age e como responde. E isso acontece não só na dramatização. Ao contar a própria história, mas a partir dos recursos que o diretor do psicodrama utiliza, o paciente vai se dando conta do que acontece. É quando ele percebe que atitude tem em relação à mãe.
Mas existem restrições no uso do psicodrama em pacientes. Alguns profissionais, inclusive, desaprovam o uso da técnica em psicóticos, apesar da doutora Isabel Rosana afirmar que elas podem apenas variar, de acordo com a necessidade de cada um. "Algumas técnicas não são recomendadas, mas não existem proibições. Na escola, você tem uma disciplina que é psicodrama para psicóticos. Infelizmente, a sociedade em geral ainda tem pouco conhecimento. Mas isso acontece até nas pessoas da área psíquica. O pior é que associamos essa falta de conhecimento ao preconceito que as pessoas têm. O meu desejo que as pessoas se abrissem mais e pudessem entender, ler e estudar o psicodrama para tirar a visão preconceituosa e preconcebida que existe", desabafa a especialista.
"Não vou usar qualquer recurso com o psicótico, mas o psicodrama tem uma infinidade de coisas que podem ser usadas. O psicodrama é mais uma alternativa dentre as outras que podem ser utilizadas para tratamento de pacientes ou é mais eficaz ou mais específico. Como se encaixa no universo da psicanálise e psicoterapia. Um bom exemplo é trabalhar com objetos intermediários. Trabalhar a dramatização, considerando que a gente não vai esperar que o portador de doença mental aja como um indivíduo neurótico ou normal sem graves problemas psicóticos", explicou.
O uso do psicodrama no tratamento de pacientes com distúrbios psicológicos é hoje tão bem aceito no meio profissional, que o aumento pela procura e oferta de cursos que preparem os profissionais tem aumentado significativamente. Atualmente, eles podem ser encontrados em vários lugares do Brasil, reunidos em torno da Federação Brasileira de Psicodrama e das associações estaduais. A maioria dos cursos está nas universidades federais, e São Paulo é o local que tem mais escola de psicodrama.
Pode ser usada para diversas intervenções. "No caso da utilização para psicóticos eu considero um excelente recurso, inclusive, além da psicanálise. Muito psicanalista não atende pacientes psicóticos, porque acredita que não possui ferramentas para isto. Um paciente com transtorno mental pode ter no psicodrama uma excelente ferramenta para o cuidado terapêutico", finaliza.