Na Casa dos Loucos

Por Felipe Prestes

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As artes, muitas vezes, manifestam-se como o limiar entre loucura e razão. Talvez, pelo detrimento da racionalidade em favor da sensibilidade. Em Porto Alegre, a busca pela ocupação de espaços ociosos levou parte da cena teatral a um contato inusitado com a loucura. Desde 1999, grupos têm utilizado pavilhões que estavam abandonados no Hospital Psiquiátrico São Pedro, pertencente ao Estado, para ensaios, oficinas e atividades como montagem de cenários.
O local, além de ser o espaço que tanto as companhias precisam para se manter, proporciona reflexão sobre questões sociais que envolvem a oposição entre loucura e normalidade. A parte do hospital utilizada pelas companhias tem ainda o apelo estético que poucos lugares podem oferecer.
O então Hospício São Pedro foi inaugurado em 1884, ainda durante o Segundo Reinado. Era o primeiro espaço destinado aos "alienados" em Porto Alegre e em toda a Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. O enorme sobrado de dois andares remete ao século XIX. Os portões enferrujados e as janelas em arco dão um charme todo especial para quem faz arte no local.
Não poderia haver lugar mais apropriado para que o grupo Falos e Stercus montasse a peça "In Surto", que abordava a temática da loucura. Foi nesse projeto que, há dez anos, primeiro se levou teatro para o Hospital Psiquiátrico São Pedro. "Sempre tivemos o perfil de buscar espaços na cidade para apresentação de nossos trabalhos", conta Alexandre Vargas, um dos fundadores do Falos e Stercus.
O grupo que montou o "In Surto" falou diretamente com a direção do São Pedro, que atendeu o pedido dos artistas. "Coincidiu com um forte debate da luta anti-manicomial. Então foi um momento propício para a entrada do teatro no espaço", explica Alexandre. No mesmo período, 144 internos foram transferidos para moradias, deixando espaços abandonados.
A temporada do "In Surto" teve boa repercussão, mas foi montada do lado de fora do prédio. Os pavilhões cinco e seis do hospital se encontravam cheios de entulhos, como camas e documentos.
As apresentações geraram interesse da Bienal do Mercosul. A organização deste evento conseguiu limpar a área para uma de suas instalações e isso impulsionou o pedido do Falos e Stercus para utilizar aquele espaço, novamente atendido pela direção do hospital. Ao longo dos dez anos outros grupos foram ocupando espaços dos pavilhões.
Entre estes, está o Oigalê - Cooperativa de Artistas Teatrais, que em 2002 fez um pedido junto à direção do hospital para também utilizar as dependências. "Sem um local como este, nosso trabalho fica inviável. Todos os grupos que estão aqui são de pesquisa, têm um trabalho continuado", explica Vera Parenza, atriz e produtora que faz parte do Oigalê.
O tipo de utilização do Hospital São Pedro se tornou referência para o projeto Usina das Artes, que foi celebrado como lei municipal em 2009 e cede espaços da Usina do Gasômetro, dando a possibilidade que grupos de atuação continuada possam gerir salas do prédio histórico, também em Porto Alegre.

Grupos podem perder o espaço
Para Alexandre Vargas, a atuação das companhias não tem sido vista com bons olhos pelas novas administrações estaduais, desde 2003, quando a Secretaria Estadual de Cultura passou a interferir no local. "Primeiro, uma antiga diretora do Lacen (Instituto Estadual de Artes Cênicas) fez auto-propaganda utilizando o espaço, no qual não fez mais que reformar um banheiro. Depois começaram a surgir boatos de que o prédio seria destinado para uma empresa ligada à fabricação de computadores", conta.
Hoje, há o permanente temor de que os grupos tenham de ser realocados. "Existem boatos de que o governo pretende instalar uma empresa que fabrica computadores aqui, utilizando a Uergs (Universidade Estadual do Rio Grande do Sul) como ponte", diz o ator.
Juliana Erpen, diretora-geral da Secretaria de Cultura do Estado, afirma que a direção do hospital tem planos para a área, sobre os quais não conhece detalhes. Vera Parenza considera que a visão que o atual governo tem para com a saúde mental condiz com a retirada dos grupos.
"Quando entramos aqui, havia uma diretoria no hospital que considerava que o paciente precisava interagir com o mundo, que estava ligada à luta anti-manicomial. A nossa presença estava bastante conectada a isso. Agora parece que as coisas estão voltando atrás, no sentido de manter os internos afastados do convívio com outras pessoas".
Por ora, o que tem garantido a permanência dos artistas tem sido as atas das reuniões que são realizadas periodicamente com a Secretaria da Cultura, nas quais este órgão se compromete a ceder o espaço. O que os grupos querem, porém, é poder gerir a área em comodato (contrato gratuito, que cede temporariamente o lugar), o que dificilmente deverá ocorrer. Vera Parenza também lamenta o fim das apresentações e ressalta que se deve a uma mudança no tratamento dos pacientes.
"Era super saudável, havia uma troca muito boa. Muitas vezes na entrada do hospital não se sabia quem era espectador da peça e quem era paciente aguardando atendimento", diz Vera, que conta, também, que a diretoria que acolheu os artistas incentivava as apresentações, por considerar importante este contato entre os doentes e as pessoas ditas normais, e até ajudava na impressão do material de divulgação das peças.
As que eram apresentadas para os internos foram uma grande perda, em termos da experiência que proporcionavam. "Eles tinham por nós um grande respeito. Via neles uma ingenuidade muito grande, e havia forte desconstrução sobre o comportamento da plateia", relata Alexandre. "Era um rompimento da formalidade. Se o interno tinha vontade de se expressar no meio da peça, ele o fazia", exemplifica Alexandre, acrescentando que a possibilidade de haver maior interface com os "loucos" não é tão simples, pois é necessária uma qualificação especial.
"Não basta ser ator para saber lidar com essas pessoas. Existe uma série de cuidados especiais, medicamentos que precisam tomar, objetos que não podem estar por perto". O escritor também explica como a loucura influencia o teatro. "Não vejo relação entre loucura e teatro, mas há uma certa ‘desrazão' que precisamos ter ao pensar a arte". Alexandre relata que tipo de reflexão o trabalho no São Pedro proporciona. "Há uma visão simplista sobre a loucura. Tem muito mais de abandono e exclusão do que propriamente uma doença que obrigue alguém a ficar deste lado dos muros".
Muros que têm significados opostos para "loucos" e artistas. Para os primeiros, a liberdade pode estar do lado de fora. Já os grupos de teatro conseguiram certa autonomia do lado de dentro. Mas os interesses governamentais muitas vezes preferem ver ambos no sentido contrário daquele que pode lhes trazer mais felicidade. Uma loucura!

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