Roupa nova

 

Por Adoniram Peres

Depois de 40 anos apresentado no Brasil pela Cia. Teatro Oficina, o espetáculo “Na Selva das Cidades”, terceira obra do autor alemão Bertolt Brecht, volta em forma de musical. Uma reeleitura encenada pela Cia. Teatro do Incêndio. Em cartaz (com preços populares) desde o dia 11 de setembro, na sala Renée Gumiel do Complexo Cultural Funarte, em São Paulo, a peça – dirigida por Marcelo Marcus Fonseca – foi adaptada para a atual realidade brasileira. Segundo o diretor, a previsão é que o espetáculo fique um mês em cartaz. “A intenção é nos apresentarmos em outro teatro de São Paulo em janeiro de 2010 e, em seguida, viajarmos pelo Brasil”, destaca.
Nesta adaptação, 14 atores em 11 cenas dão vida à implacável luta pela sobrevivência diante da destruição causada por dois homens que se enfrentam e se destroem sem motivo algum. O humor cínico, a poesia e a música (originalmente composta por João Urbílio e executada ao vivo), dão o tom a esta montagem. “O espetáculo tem um forte poder de comunicação com a juventude. Queremos que as pessoas saiam do teatro e façam uma reflexão sobre o que acabaram de ver”, revela o diretor Marcelo Fonseca, acrescentando que o espetáculo aborda a relação das pessoas dentro de uma sociedade que busca objetivos sem pensar nas consequências de suas ações – em que a relação homem e dinheiro são abordados nas questões tipicamente brasileiras.

“É o texto sobre a metrópole com o cidadão dentro. A peça traz questionamentos dessas grandes cidades já impregnadas nas pessoas, como parte do corpo. Como se tudo em sua volta fossem cartas de um jogo. É o retrato de uma sociedade agressiva, egoísta e intolerante que massacra a delicadeza e compra opiniões em um mundo no qual as pessoas estão cotidianamente se destruindo, e tudo em sua volta”, explica Fonseca.
A trilha sonora tem o mesmo tom da encenação, calcada no rock pesado. Urbílio também criou temas épicos, inspirados em “A Floresta do Amazonas”, de Villa-Lobos, e musicou o poema “A Lenda do Soldado Morto”, de Brecht, que o colocou na lista negra de Hitler, interpretada em cena por Wanderley Martins. A atriz e intérprete Cida Moreira empresta sua voz a uma das canções da peça. Segundo Marcelo Fonseca, mesmo durante os diálogos, a música invade a ação dramática com o que ele chama de “comentários musicais”, interferências feitas pelos músicos.
O espetáculo é a terceira incursão da companhia Teatro do Incêndio na obra do autor alemão Bertolt Brecht. Com as bem sucedidas montagens de Baal – “O Mito da Carne” e “A Boa Alma de Setsuan” –, o grupo criou uma identificação própria com o dramaturgo, lendo de maneira particular esse autor que não se pode rotular.

Histórico
Segundo o diretor Marcelo Fonseca, apesar do tempo entre as adaptações e por ser um texto literário, a obra apresenta uma contextualização atual independentemente do período. “Tanto nas adaptações de 1923 quanto na de 1969 foram abordados assuntos relacionados às questões políticas e sociais de cada época. Em 2009, não será diferente, a obra discutirá assuntos atuais”, destaca.
É no clima do período da ditadura militar que o Oficina chega a 1969 e elege o texto de “Na Selva das Cidades” sua nova montagem. O ano de 1968 é um período que arrasta o Brasil a um confronto com intensas contradições: a ditadura mostra-se cada vez mais repressiva, lançando o Ato Institucional nº 5; a luta armada há dois anos traz a violência para as principais capitais; e São Paulo, semidestruída ao longo de quilômetros para as obras da via elevada que hoje a atravessa, era convulsionada pelas passeatas estudantis.
A primeira montagem brasileira de “Na Selva das Cidades” pela Cia. Teatro Oficina, em 1969, foi dirigida por José Celso Martinez Correa e cenários de Lina Bo Bardi, trazendo no elenco Renato Borghi no papel de George Garga, Othon Bastos vivendo o malaio Shlink e Ítala Nandi como Marie Garga. Nesta encenação exige uma total remodelagem do espaço físico da Oficina: as cadeiras são retiradas e o palco giratório, desmontado, dá lugar a um espaço amplo, cujo centro é ocupado por um ringue de boxe.
Com tais técnicas, e robustecida pelas incessantes improvisações do elenco, a peça chega a ter cinco horas de duração no período de ensaios e motiva o desejo de encená-la em capítulos diários. Mas, é compactada para cerca de três horas de espetáculo. A violência, tema do texto, atravessa toda a encenação. Razão pela qual, ao final de cada cena – denominada round – os adereços e elementos cenográficos em cima do ringue são estraçalhados pelos atores, ao grito de: quebra!!
Na verdade, “Na Selva das Cidades” estreou em 1923 e provocou opiniões divergentes dos críticos. Nela, dois homens entram em luta por uma espécie de “posse da alma”, onde os seres humanos ao redor deles são meras peças utilizadas num jogo onde corpos são empilhados metaforicamente. O crítico Herbert Jhering disse naquela ocasião: “nessa peça seres humanos sugam uns aos outros como vampiros; nela, as boas ações destroem. E os charcos exsudam luz”.
A peça é ambientada em uma fictícia Chicago norte-americana, onde uma família de emigrados tenta sobreviver. O jovem Garga torna-se empregado de uma livraria e vai experimentar um insólito desafio: vender sua opinião para o poderoso malaio Schlink, controlador da prostituição e do tráfico. Isso abre a guerra entre os dois, que atravessa toda a trama. Das implicações metafísicas presentes nesse confronto até a mais sangrenta sobrevivência nos mangues que cercam a cidade, onde ambos serão caçados pela polícia. A peça explora todas as etapas da desarticulação da família Garga. A irmã Maria, estuprada pelos capangas do malaio, se entrega à prostituição, caminho que também a namorada de Garga trilhará. Os pais, reduzidos quase a objetos, chafurdam no lixo à cata de comida.

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