Entrevistas
O tapa da Musa do Underground
Por Rodrigoh Bueno
Quando a equipe de reportagem do Jornal de Teatro foi até a casa de Maria Alice Vergueiro, em São Paulo, esperava uma entrevista sobre os quase 50 anos de carreira da atriz, mas já tínhamos ideia de que o bate-papo não seria assim tão comum. Recepcionados pelo amigo Luciano Chirolli, fomos apresentados a Maria Alice, que nos recebeu com um delicioso café. E nós bebemos - não só o café, mas ela. Devoramos as horas de conversa com uma mulher que diz "não ter mais nada para provar ou esconder de ninguém".
A sala da casa já é conhecida, com o mesmo sofá no qual foi gravado o curta "Tapa da Pantera", sucesso da internet que apresentou a "Grande Dama Indigna do Teatro Brasileiro" para um público que, talvez, não conheça os demais personagens protagonizados por ela nos palcos e na vida. O próximo desafio da atriz é levar aos palcos a montagem de "As Três Velhas", texto do chileno Alejandro Jodorowsky com os atores Pascoal da Conceição, Luciano Chirolli e Marat Decartes. Como só acontece com os grandes artistas, Maria Alice Vergueiro naturalmente deu vida às suas palavras e falou sobre o pensa, acredita e defende.
Maria Alice Vergueiro: "Você não mexe na arte sem mexer no seu cotidiano."
Política Cultural
Logo que eu comecei minha carreira artística, fizemos muito teatro de interferência. Por exemplo, você entra dentro de um ônibus com um colega e eu atuo que assalto ele, e você obriga as pessoas presentes a se colocarem. Na verdade, o ator não é nenhum simplório de pensar "ou isso, ou Shakespeare", mas ele é a própria formação da platéia. Depende de você acreditar na sua ideia, dar acesso à arte. Não adianta forçar alguma coisa. Acho que seria ótimo fazer meu espetáculo na Praça Roosevelt, por exemplo. Mas eu gostaria que houvesse outra possibilidade. Não defendo uma tese de que há coitados que não tem oportunidade. Não é isso, acho que as pessoas tem que abrir possibilidades. Não adianta você também ser geral sem o particular. Tem outra anedota, que é verdade, é que um banco tinha acabado de patrocinar dois espetáculos caríssimos e o diretor de marketing não foi assistir por que disse que a peça era muito longa. Ou eles visam o retorno financeiro ou estão preocupados com a valorização da arte.
Seria formidável convidar os patrocinadores, por exemplo, para ir ao nosso ensaio no Casebre e ver o conteúdo de nosso trabalho. Para ele comprar uma mudança! Acho que eu vou dar um bilhetinho pro Lula e falar, "Olha, eu sou a Maria Alice Vergueiro..." Porque, eu tenho certeza que mesmo que o Lula não goste de teatro, ele vai compreender a minha vontade, pois acho que essa é a vontade dele. Tenho a impressão de que ele escuta mesmo e elabora a resposta na hora, está presente no que está fazendo. E acho, de repente, que se eu encontrar o Juca Ferreira e contar essa minha vontade, eles vão querer me aproveitar de alguma maneira! E aí a gente já faz uma outra coisa menos individual, por que essa peça [Três Velhas] é tão boa que eu temo que ela entre numa temporada de dois meses num teatro da Paulista, que os críticos façam seus comentários, e morra aí.
Professora
Em 1965 eu lecionava no Colégio Aplicação, um colégio estadual que tinha grande parte dos professores como estagiários da USP. Eu mesma era estudante de Pedagogia. Na época, estávamos todos testando novas formas de ensino e de cursos integrados, e lá isso acontecia de fato. Por exemplo, um professor de História dava aula de Molière e depois todos se reuniam no teatro. Tínhamos um grupo que era chamado Meta (Movimento Estadual Teatral do Aplicação), composto por uma moçada de 13, 14 anos que fazia teatro, vendia ingresso e ia muito ao teatro. Houve uma formação de público espontaneamente. Eu levava os meninos para assistirem as peças de teatro e muitas vezes eles eram menores, era preciso alvará especial com o juiz de menores, havia um entusiasmo. Me lembro que quando eu dava aula os alunos me aplaudiam no final, havia uma forte relação entre aluno e professor. Há 44 anos eu falava sobre isso, então me pergunto, onde eu errei?
Período
Esse entusiasmo tinha a ver sim com a época de contra cultura. Foi em 1965, estava nascendo o Arena, o Oficina, mas essa formação de público escolar foi uma experiência isolada. Hoje não se tem o requinte de uma integração de matérias, de uma professora que conhecia o Paulo Autran e podia levar os alunos para conversar com ele depois de uma matinê de "Édipo Rei", por exemplo. Agora enfrentamos um momento muito mais interessante. Muitos professores antigos vão achar um absurdo o fim do vestibular. Eu acho fantástico! Vejo tantos adolescentes desesperados com a profissão, precisando entrar em uma faculdade. Quantitativamente o acesso e a inclusão são muito maiores hoje.
Grupo
O ornitorrinco virou um grupo de teatro, mas antes era só um grupo de amigos que se juntaram. Todos esses trabalhos meio anárquicos não duram muito mesmo, por que logo você tem que definir o que é. Vai pegar verba pública, como vai dar continuidade? Se você vira parte de um grupo, tem que entrar nas regras do jogo. No Brasil nós não temos um Off Brodway, por exemplo, digno e de qualidade. Deve-se considerar os espetáculos como outra moeda, ter outros críticos - ou até os mesmos, mas com outro enfoque. Os trabalhos estão à mercê sempre dos mesmos curadores e eu não queria ser julgada assim. As "Três Velhas" discute essa coisa meio decadente, que não sabe pegar os tempos novos. Será que a única forma de se pegar dinheiro para um produção é se humilhando, sendo hipócrita?
Maconha
Eu me preocupo com o que falam por aí sobre o vídeo, pois foi interditado em colégios e acusado de incentivar o uso. É preciso acabar com esse tabu. E essa história de você não conseguir verba por conta do que você fala é provincianismo, pois em qualquer lugar do mundo você fala mal do sistema, uma vez que ele te absorve, te dá grana pra você fazer um filme sobre ele, com certo cinismo, claro, porque faz parte. Até o Fernando Henrique já falou sobre a discussão da legalidade da maconha. E isso ajudaria a diminuir os problemas sociais, como a violência. Pois quem ganha com isso não são os fodidos do morro ou a moçada, e sim os grandes cartéis. Eu tenho certeza que as pessoas mais esclarecidas discutem esse assunto. Mas também não pode haver mudança de uma hora para outra, mas é um caminho. Sei que a minha contribuição para o tema serviu também para banalizar um pouco, pois a maconha é muito associada à violência, como nos filmes "Cidade de Deus" e "Tropa de Elite". E, de repente, chega uma senhora, da alta sociedade paulistana...
Cheguei até a propor aos meninos que fizeram o vídeo, uma continuação, com eu saindo daqui, gritando na rua como louca, sendo repreendida. E lá fora uma moçada me salvando! Tem que dar uma banalizada, pois agora tem o álcool e o tabaco na televisão. Eu acho que um pouco de álcool faz bem pra saúde, porque não é ele que você tem que cortar, e sim a tristeza de auto-estima, pois uma pessoa que tem uma boa auto-estima não quer se destruir. E você tem que beber para celebrar, e não para se machucar. Acho que não pode liberar total, mas não pode proibir. Uma amiga minha conta uma história muito legal sobre um dos filhos que ela tem: o André tinha seis anos e estava triste, e a mãe perguntou o porquê. Ele disse que queria tanto que Deus existisse, para que ele fizesse Papai Noel existir. E ela percebeu que ele já estava desmistificado pelo que viu na TV. A gente tem mesmo é que dar risada.
Idade
Agora eu descobri uma coisa com essa história das "Três Velhas", onde senti a necessidade de entrar no palco. Eu comecei a discutir comigo mesma essa questão da velhice, da aposentadoria e do Parkinson. Eu estou com início de Parkinson, e senti que não gostaria de esconder essa... não diria decrepitude, mas essa condição que a elite cria como um tabu de que você é culpado por estar velho. De repente, velho começa a mijar, a fazer cocô fora de hora, ou a tremer, entendeu? Então você começa a passar vergonha para a família. Ou se você não é a vergonha, você recebe os parabéns por estar com saúde. E é aquele valor que surge saudosista de estátua. (risos) Eu acho legal! Agora, na verdade, estou discutindo isso através da personagem do "Tapa na Pantera". Eu vi que ninguém estava interessado na maconha. Eu pensei que eu ia pegar toda essa moçada interessada na maconha, mas não era. A maior parte das pessoas estava na dúvida se eu era atriz ou se a personagem era real, se eu era a personagem. Porque, até então, o YouTube estava hospedando vídeos da festinha de aniversário do filho, aquela coisa... E eu trouxe algo mais elaborado, ou então parecia que realmente era um flagrante meu. E eu mesma comecei a discutir o que era ser atriz para mim agora. Falo disso com naturalidade, assim como o texto de "Três Velhas". Agora qual é o empresário que vai patrocinar uma peça que fala de zoofilia, de pedofilia, de incesto, de homossexualidade, de antropofagia e de velhice?
É preciso comprar a mudança da arte pelo conhecimento?
É algo que acontece em cadeia. Você não mexe na arte sem mexer no seu cotidiano. Alguns dizem que no tempo eu comecei a fazer teatro, anos 60, 70, as pessoas tinham vontade de fazer nas coisas. Eu acho que nesse tempo também há! Olha o jornal de vocês. Olha a moçada que quer fazer as coisas e me convida para participar. Ou eles fazem aquela brincadeirinha da faculdade e qual é o ator que fala: "Vamo lá! Eu topo, quando é a filmagem?" ao invés de ficar lá, fazendo uma novela atrás da outra. No meu tempo, politicamente, a gente fazia aquelas peças com o sindicato e participava muito mais. Acho que todo mundo se decepcionou, né?
O problema é que, por mais que queiram fazer uma coisa social, eles pagam um tributo. Agora querem fazer um teatro, precisam de dinheiro. Não é uma coisa de dentro pra fora, de baixo pra cima. Porque, por exemplo, quando me perguntam assim porque que eu faço alguma personagem, eu digo que é uma coisa pra mim, porque é um momento de orgasmo total, que me dá êxtase, é ou não é? A hora que você entra em cena, você já ganhou, porque está tudo ajudando aquilo a dar certo. Tem uma energia fantástica, como conversar com vocês, por exemplo. Porque a coisa que mais une as pessoas é a criatividade, e sexo, não é verdade? Gozar no sexo é uma puta criatividade. É uma entrega, uma coisa de verdade. Enfim, estou sentindo um momento bom, está fervendo umas coisas aí e acho que tem muita vontade na moçada.
Espaço
Eu tenho certeza de que o que eu tenho para comunicar, o que eu tenho para fazer, vai ser muito interessante para muita gente, mas para isso você precisa ter um teatro. Eu não queria ter um barraco, porque, por exemplo, "Três Velhas" precisaria de um lugar melhor. Não é porque é um teatro popular que tem que ser um teatro pobre, pedinte, não é verdade? De repente eu acho uma injustiça. Há muito tempo tenho vontade de ter um espaço para poder fazer isso que estamos fazemos para mais pessoas. Sair de lá, fazer nossa peça, ter a possibilidade de receber um público à noite, com convidados, para esses banquetes que tem por aí. Mas estamos cansados de pedir, e não deveríamos ter que pedir tanto. Quando o Gianfrancesco Guarnieri, com quem eu comecei o Teatro de Arena há muitos anos atrás, era o secretário de cultura do Estado de São Paulo, fomos pedir pra ele a utilização dos teatros da Prefeitura, mas não conseguimos. Mesmo sendo amigos, ele negou o pedido. Porque esse trabalho que a gente fazia não poderia ter sido num teatro da Prefeitura, com uma verba dada para a gente? Aí tivemos que fazer comercial para sobreviver, para se reestruturar. Eu, peguei meu Prêmio Moliére, que recebi, e fui para Paris tomar um porre de champagne! Isso também foi muito bom, mas porra! Podia ter gerado outras coisas...
Você acha que paga um preço pela convicção no seu jeito de fazer arte?
Não acho que se trata de uma escolha, você é escolhido. Não me sinto vítima de porra nenhuma e acho até que é bom o tempo ter passado, pois agora nesse momento eu não saberia dizer o que é essa energia de grupos de teatro, ou de ter um espaço cultural para tomar conta. Preferia ser uma musa desses ambientes, apesar de não estar com energia de trabalhar 44 horas semanais. Talvez isso pudesse ser um caminho, quer dizer, se todas essas entrevistas que eu dou não se popularizassem (como se eu fosse) maconheira. Mas acho que faz parte. Porque com isso você também coloca inteligência na mídia, e eu fico sendo como aliada de vocês. Assim eu acho legal.
Público
Sem público é muito difícil você se interessar pelo que você está fazendo. Eu tenho prazer em fazer um espetáculo para 40 pessoas, por que daí você vai falar no ouvido de cada um, teatro também tem essa maravilha, você entra no qualitativo. Eu como atriz prefiro muito mais fazer um teatro para 40 pessoas já iniciados na arte, ou que o meu trabalho vai iniciá-los. É aquele convívio direto, quando você sente a respiração "do" público e não do público que vai por que não tem aula a noite e ainda fica fazendo barulho na platéia. Eu acho que o teatro que eu gosto de fazer é esse que você sente que é você que da o foco, da o ritmo da respiração, e sem olhar para o publico você olha para o público e sente que ele está se transformando na sua frente, entrando em transe. Mas, ao mesmo tempo, eu apoio totalmente levar as "Três Velhas" para as escolas da cidade, por exemplo. E sem nenhum professor ter que preparar nada. Eu jogo a minha criatividade e você sente. Não acho válido dirigir o público: você vai ver como você quer ver.
Breve Biografia
Maria Alice Vergueiro nasceu em São Paulo em 1935. Formou-se em Pedagogia pela USP. Foi professora no Colégio de Aplicação (ligado à USP) e na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Viveu em Lisboa, onde desenvolveu suas pesquisas com a obra de Bertold Brecht. Autodidata, trabalhou com consagrados diretores do teatro brasileiro, como Zé Celso Marinez Corrêa, Luís Antonio Martinez Corrêa, Cacá Rosset, Gerald Thomas, Felipe Hirsh, Rubens Rusche, Roberto Lage e Luciano Chirolli.
Em 1977, fundou, com Cacá Rosset e Luiz Roberto Galízia, o grupo Teatro do Ornitorrinco. Participou de festivais de teatro pela América do Sul, pelos Estados Unidos e pela Europa. Recebeu diversos prêmios como Melhor atriz, dentre eles Molière, Mambembe, APCA e Shell, por importantes trabalhos, especialmente pela peça No alvo (direção de Luciano Chirolli), no qual praticamente introduziu no País a obra do alemão Thomas Bernhard.
Traduziu textos de Bertold Brecht. Dirigiu os espetáculos As preciosas ridículas, de Molière (1968), O amor de Dom Perlimplim com Belisa em seu jardim, de Federico Garcia Lorca (1992), e Quíntuplos, de Luis Rafael Sanchez (1995). Atuou em longas-metragens, como O rei da vela (1973), de Zé Celso Martinez Corrêa, Maldita Coincidência (1979) e Cronicamente inviável (2000), ambos de Sérgio Bianchi, Topografia de um desnudo (2006), de Teresa Aguiar (sobre a obra homônima de Jorge Diaz), Condomínio Jaqueline (2008), de Roberto Moreira, entre outras pequenas participações em longas, além de ter trabalhado em diversos curtas (principalmente nas direções de Rafael Gomes).
Na televisão, participou da novela "Sassaricando" (1987) e da minissérie "O Sistema" (2007), ambas na Rede Globo. Gravou o CD "O Lírio do Inferno" (2006), trabalho que apresenta um conjunto de obra de Brecht e seus parceiros, cantada por ela em espetáculos como "O Lírio do Inferno", "Ponha o Tédio no Ó" e "A velha Dama Indigna", pela primeira vez registradas em áudio, e disponível gratuitamente no blog. Em 2005, o curta "Tapa na Pantera", criado por Rafael Gomes, Esmir Filho e Mariana Bastos, e protagonizado por Maria Alice, estourou no YouTube, com mais de cinco milhões de acessos.