Sandro Borelli começou sua carreira profissional, na dança, há mais de 20 anos. Hoje, ele se considera muito mais coreógrafo do que bailarino e seu talento já foi reconhecido por sete premiações de renome - cinco APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes), um Promodança e um Bravo!Prime. Com estigma de polêmico que ele não concorda, o artista falou ao Jornal de Teatro sobre sua vida profissional, sobre o mercado da dança no Brasil e sobre suas motivações.
Jornal de Teatro - Como começou o seu envolvimento com a arte?
Sandro Borelli - Sempre tive gosto por esporte e essa coisa de cultuar o corpo, mexer o corpo. A minha relação com a arte começou por aí, mas sem eu perceber. Eu, adolescente, via fotos, em revistas e em jornais, de bailarinos clássicos. Achei a construção corporal deles fantástica e pensei: "queria ter um corpo igual a esse". Totalmente narcisista. Entrei na arte desta maneira. Fui aprender balé, mas pensando neste conceito, igual a fazer musculação. Fui vivenciando, experimentando, sofrendo, pois você tem que transformar todo o seu corpo... Fui me apaixonando e ficando... Até hoje.
JT - Como foi a transição de bailarino para coreógrafo?
SB - Eu tinha uma ambição quando comecei, mas estava lá dentro. Mesmo quando eu era bailarino, dançava, eu tinha uma visão crítica muito aguçada. Não no sentido de achar que o que eu fazia não era bom, mas eu observava muito os coreógrafos com os quais eu trabalhava, observava o processo. Sempre me encantava mais o processo de criação desses caras, construindo a coisa, do que propriamente quando eu estreava e ia para o palco. Então foi um processo natural. Percebi que meu barato era criar histórias.
JT - Qual a sua maior preocupação ao criar uma coreografia?
SB - A minha primeira preocupação, hoje, é com um projeto de criação política, até panfletária. Me aproximo de questões que vão para esse caminho. Estamos sempre fazendo Kafka, vai estrear daqui há um mês a obra política do Che Guevara, a gente fez o Renato Russo, o discurso ético e político dele. A primeira coisa é isso, fazer um tipo de arte revolucionária mesmo, sabe? A arte e o artista existem para derrubar rei e rainha, derrubar governo, revolucionário mesmo. O artista que é a favor do sistema está na profissão errada. O artista tem que ter esse fogo interno de revolucionar o mundo, senão ele está preso ao sistema e será engolido.
JT - A maioria de suas obras tem a fama de ser polêmica. Como fica sua relação com o grande público?
SB - Eu não tenho essa aproximação porque o artista não tem grande visibilidade. As pessoas até me conhecem pelo nome, mas se eu passasse na rua as pessoas não me reconheceriam. Às vezes, ouço comentários e tal, mas não tenho essa convivência próxima do público.
JT - Em suas coreografias há um público específico que você quer atingir?
SB - Faço para todos, pensando em todos, mas, especificamente, para alguns setores. Estes setores, porém, não vão assistir, não vão nem ouvir falar, porque a burguesia não vai ao teatro, não vem aqui. Mas é legal criar espetáculos para ela, para esta elite, focado nela, mas com o povo assistindo. Isto é expor o sistema.
JT - Você sente que os prêmios validaram seu trabalho?
SB - Não. Os prêmios são importantes, mas a forma como são feitas as premiações... Sempre discordei disso. Por exemplo, a dança tem uma comissão de três ou quatro pessoas que votam, e, geralmente, não veem tudo que acontece. Sempre achei muito duvidoso, mesmo quando ganhei. Quer dar prêmio? Acho ótimo, mas o prêmio não aumenta o seu cachê. O que aumenta seu cachê é a sua produção.
JT - A sua próxima produção será sobre Che Guevara?
SB - Era fatal fazer Che Guevara, um dia chegar a ele. Por toda minha trajetória artística e do grupo, como fatalmente chegamos, um dia, ao Kafka. Principalmente pelo momento político da cultura, da nossa cultura, essa desordem toda que estão fazendo, essa falta de projeto político... O que existe é apenas distribuição de verba e isto não é projeto político. Você vai se engajando cada vez mais e chega uma hora que percebe que ser artista é engajamento total, é ter uma posição política, é ser contra um estado vigente de coisas.
JT - Pela escolha da sua carreira, você foi chamado de louco?
SB - Nunca me falaram isso, mas acho que sim. Eu tenho fama, as pessoas acham que eu sou meio destemperado, meio bocudo. Tenho esse estigma, mas acho que, agora, não mais, pois sempre fui assim. Então continuo produzindo, continuo na área. Mas houve uma época em que as pessoas achavam que eu queria chocar, outra coisa tão imbecil. Artista chocar? O artista não choca ninguém, o que choca é a vida, a realidade. Mas meus pais nunca falaram "não faça isso", me deixaram livre para fazer de tudo.
JT - Muitas pessoas falam que você gosta de chocar. É um objetivo para você?
SB - Eu sou autoral. Então quando a gente vai fazer Kafka, Che Guevara, Augusto dos Anjos é sempre autoral, é a minha impressão da obra. Eu tenho uma história de vida construída psicologicamente, então é meu jeito de fazer. Eu acho tão bom as pessoas assistirem e ficarem incomodadas com aquilo... Você tem que ficar. Se o sujeito assiste e não sente nada, deveria pegar o dinheiro de volta. Nunca tive a intenção de chocar, apenas de me colocar ali, os meus fantasmas, as minhas angústias... Acho que as pessoas se incomodam porque estão se vendo, a cena é espelho, o coitado do criador não é culpado daquilo.
JT - Sua intenção sempre foi política?
SB - Não, isto eu tinha sem saber. Fui perceber que esse deveria ser um caminho há uns cinco anos. Kafka foi o autor que me chacoalhou, pois a obra dele, por trás de tudo, tem um cunho político muito forte. Quando eu comecei a perceber isto, começou a acontecer uma revolução e percebi que antes eu já tinha isso. Procuro usar minha intuição de maneira mais técnica, direcionada assim.
JT - Como é seu processo de criação?
SB - É emocional, bem sensitivo. Você começa a ler muito e procura mais coisas a respeito do autor. No caso do Kafka, é importante você saber porque o cara escreveu aquilo, você tem que procurar identificar o porquê... Tem algum motivo. Você começa a dissecar o cara, o lado humano, você fica nas duas coisas, na obra que ele criou e nele. É bem emocionante.