Gabriel Miziara: A experiência de quem viveu a loucura (nos palcos)

"Loucura" é um espetáculo que advém de uma pesquisa sobre este tema que a mim sempre foi inquietante. O "louco" muitas vezes é colocado como um ser que perdeu o contato com a realidade e me pergunto: será? Ele pode simplesmente enxergar com novos olhos coisas que simplesmente não queremos olhar, dada a sua profundidade, sua intensidade. Um "louco" é um homem perdido em si, perder-se em si é entrar no labirinto do Rei Minos sem o fio de Ariadne, é encontrar o Minotauro, meio homem, meio bicho e ser devorado. A porção animal vem à tona e tudo que é imposto como bons costumes, regras sociais e acordos se desfazem. O "louco" de nosso espetáculo não segue as regras, não tem superego que lhe diga o que é certo ou errado, ele é id puro; pulsão e potência.
Sempre tive na literatura uma aliada - poesia, prosa, dramaturgia, biografia - são mundos que se abrem, ampliam a imaginação do ator, nos colocam em lugares que sozinhos muitas vezes não visitaríamos. Nos apresentam facetas, espelhamentos de nós espalhados nas personagens e nas vidas de Shakespeare, Camus, Beckett, Brecht, Jung, Rilke, entre tantos outros.
E foi a partir deste território, do imaginário desses autores, que nasceu o espetáculo. Conjuntamente com Marcelo Lazzaratto, diretor e mais que isso, um grande companheiro de vida e de palco, mergulhamos nesta pesquisa, entrevendo nas páginas desses autores trechos que iluminassem a "Loucura". Seis meses depois, em dois fins de semana, entre pilhas de livros e textos, conseguimos o esqueleto dramatúrgico da peça. Optamos por a peça acontecer em uma revolução solar, ou seja, um dia na vida deste "louco" que nunca nomeamos, ele apenas é. O que se tem no palco é um tablado branco e um ator. Um dia esse "louco" foi colocado neste espaço - seria uma cela? -  e ali é abastecido por livros, comida, um urinol para as necessidades fisiológicas e no momento de revolta uma camisa de força, claro. O que ele busca? Ele é um homem que avidamente se questiona, que purga suas dores através de palavras e circunstâncias alheias a ele. Nesse sentido podemos estabelecer uma relação desse louco com o trabalho de ator. Será que no ofício do ator, de algum modo não encontramos essa mesma busca? Importante salientar que durante o processo optamos por não fazer visitas a instituições psiquiátricas queríamos descobrir como a "loucura" em mim se manifestava.
Em 2001 estreou "Loucura" monólogo da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico. Como escreveu Alberto Guzik em sua crítica no jornal "O Estado de São Paulo": "Loucura é o mais verbal dos espetáculos físicos e o mais físico dos espetáculos da palavra". O que é apresentado ao público em 50 minutos é pulsão e potência dentro de uma partitura física rígida e desta colcha de retalhos textual elementos que indicam a fragmentação deste homem. Contabilizo no corpo pontos no queixo, uma artéria estourada no braço, calos, luxações. Muitas vezes sai do espetáculo absolutamente esgotado física e mentalmente. Este território exige visceralidade, exige o não poupar-se. Levei sim "o personagem pra cama", muitas noites de insônia, pesadelos, exaustão. Durante o período de ensaios muitas vezes fizemos três "gerais" e o terceiro era sempre o melhor, pois desta exaustão brotava a verdade deste homem, exausto por debater-se consigo mesmo. Eu era muito jovem na época, estreei "Loucura" com 23 anos, recém saído do Teatro-escola Célia Helena - onde me formei e onde hoje dou aula. Olhando a trajetória desde a estreia até hoje e contabilizando mais ou menos 150 apresentações, o espetáculo foi se modificando, mas se modificando por dentro, visto que as inquietações mudam, novas perguntas são feitas. Em "Loucura" não procuramos responder, dar um diagnóstico sobre o tema e sim dividir perguntas, propor questionamentos. Muitas vezes escutamos que o espetáculo deveria se chamar "Sanidade" e não "Loucura", exatamente por isso.


Gabriel Miziara é ator e diretor, membro da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico que ano que vem comemora dez anos de existência. "Loucura" foi seu primeiro monólogo.