Uma dama que não usa black-tie

Por Carlos Gabriel Alves

Mais de meio século de carreira, atuação em cerca de 50 peças, 20 produções teatrais, participação em 25 telenovelas, oito aparições no cinema, trabalhos com dublagem, teleteatro ao vivo, idealização de um teatro em São Paulo e 74 anos de vida. Esses são os números de Miriam Mehler, uma mulher que tem sua vida confundida com a história do teatro paulista e nacional, e que não pensa em parar de atuar.
“Eu escolhi essa profissão por amor, por paixão e continuo com essa paixão até hoje. Cada vez que entro em cena me sinto muito bem e realizada. Gosto do contato direto com o público e o teatro te possibilita isso na hora. Atuar é o que mais me encanta na vida. Se me convidarem, vou continuar me apresentando até morrer”.
Tamanha paixão e vocação foram despertadas ainda na infância, quando Miriam freqüentava teatros com a família. “Meus pais costumavam me levar para assistir peças. Quando chegava em casa, representava os papéis que tinha assistido. Gosto de atuar desde pequena”, conta a atriz.
No entanto, quando decidiu fazer a EAD (Escola de Arte Dramática), em São Paulo, se deparou com uma exigência de seu pai: se quisesse ser atriz precisaria entrar na faculdade de Direito. Miriam acatou a decisão, e, após ser aprovada no curso de direito, ingressou na EAD, onde ficou por quatro anos.

Noites de Gala
Sua estreia nos palcos foi em grande estilo, em peça que inaugurou uma nova fase no Teatro de Arena, em 1958. Miriam classifica a obra “Eles Não Usam Black-Tie”, de Gianfrancesco Guarnieri, como “um marco”, e relembra: “Na época, o Teatro Arena estava no limite. Ou essa peça do Guarnieri emplacava ou o teatro fechava. Eu resolvi topar, apostei com eles, e foi uma aposta vitoriosa. A peça fez imenso sucesso e foi uma grande estreia, não só minha, mas do Guarnieri como autor também.”
O ano de 1958, o primeiro após se formar na EAD, trouxe grandes frutos para a atriz, que, além de participar da bem sucedida montagem de Guarnieri, também fez parte do elenco de “Um Panorama Visto da Ponte”, de Alberto D´aversa – produção do consagrado TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), primeira companhia teatral profissional do País – e ganhou o prêmio de atriz revelação da APTC (Associação Paulista de Críticos Teatrais), por sua atuação em “A Lição”, de Eugène Ionesco e direção de Luís de Lima.
Com sua carreira em ascensão, Miriam ligou-se, em 1963, ao Teatro Oficina, onde atuou em peças como “Quatro Num Quarto”, de Valentin Kataev, “Pequenos Burgueses”, de Máximo Gorki, e “Andorra”, de Max Frisch.
Miriam relembra com carinho esse período, no qual teve a oportunidade de trabalhar com grandes nomes da dramaturgia brasileira. “Foi uma época muito boa. Aprendi muita coisa. Pude trabalhar com Zé Celso, que era um diretor sensacional. Tínhamos também Eugênio Kusnet, que era professor e ator maravilhoso. Foi uma experiência que me enriqueceu muito”.
No final dos anos 1960 e início dos 1970, Miriam e seu marido na época, Perry Sales, investiram esforços para a inauguração do Teatro Paiol, em São Paulo. Ela revela que a ideia do projeto foi mais de Sales do que dela, com o ideal de que tivessem um espaço onde pudessem trabalhar juntos. “O teatro, na verdade, era um galpão. Nós o construímos. No começo, pretendíamos fazer só peças nacionais, mas logo percebemos que precisaríamos trabalha também com grandes textos”, comenta.
Nos dez anos em que esteve à frente do Paiol – mesmo depois de separar-se de Sales – Miriam não só atuou, mas também produziu diversas peças. Destaques para as montagens “A Flor da Pele”, “Abelardo e Luísa”, “Bonitinha, mas Ordinária”, “Greta Garbo, Quem Diria, Acabou no Irajá”, “Salva”, “Absurda Pessoa” e “Um Grito Parado no Ar”.

Danos irreversíveis
A ditadura militar, instaurada no País na época em que Miriam ainda estava no Teatro Oficina, trouxe sérias conseqüências ao modo de o teatro ser feito e apresentando. “No início da ditadura estava em cartaz com a peça “Os Pequenos Burgueses” e fomos obrigados a parar com as apresentações”, conta a atriz.
Essa não foi a única dificuldade que o regime causou aos atores. “As peças eram censuradas e cortadas. Tínhamos que apresentar uma sessão completa para os censores liberarem ou não as montagens”, diz Miriam.
Porém, mesmo diante dessa atmosfera de censura, vigilância e controle, Miriam consegue apontar algo de positivo: “Foi, para os autores e atores, uma época muito criativa, pois tínhamos de driblar essas dificuldades e dar um jeito de fazer as coisas andarem”, diz a atriz, que ressalta a importância do movimento teatral no contexto. “Tínhamos que lutar contra a ditadura e nossas armas eram a palavra e o teatro”, frisa Miriam, acrescentando que esse período foi traumático e de danos irreversíveis não somente para o País, mas para o meio. “Esses 21 anos de ditadura afastaram o público dos teatros e sentimos os reflexos disso até hoje”.
Nos anos pós-regime militar, a atriz – com sua carreira já consolidada – continuou atuando e se destacando. Nas décadas de 1980 e 1990, esteve nos elencos de “Tem um Psicanalista na Nossa Cama”, de João Bethencourt, “Não Explica que Complica”, de Alan Auckbourn, “A Herdeira”, com direção de Flávio Rangel, “Luar em Branco e Preto” e “Vidros Partidos”, última obra do autor Arthur Miller, dirigido por Iacov Hillel.
Em 2009, a atriz esteve em cartaz, em São Paulo, com a peça “Mãe é Karma”. No elenco, Renato Borghi, amigo desde a época em que atuaram juntos no Teatro Oficina. Para Miriam, atuar com Borghi é fácil e natural. “Temos uma compreensão e intimidade cênica como eu nunca vi com outra pessoa. Para quem assiste à peça, parece realmente que somos marido e mulher”, enfatiza.
Miriam admite que interpretar é um grande desafio e que ao longo de sua carreira sempre teve dificuldades para montar seus papéis, “dando um pouco da Miriam para cada personagem e tirando um pouco de cada personagem para a Miriam”. Com uma trajetória de sucesso tanto na televisão quanto no teatro, a atriz conta que gostaria de ter atuado mais no cinema. Mas não esconde sua preferência pelos palcos. “Entre os três, fico com o teatro, mas para mim o importante é atuar e representar. É disso que eu gosto, seja na tela ou na televisão. Mas é do teatro que me alimento. É a base de tudo”.