Fernando Eiras

“Complicar para chegar ao simples.” Dizer que essa frase seria uma espécie de lema para Fernando Eiras seria apenas mais uma das falsas simplificações que a imprensa costuma recorrer. Diríamos então que essa síntese seja uma constante na carreira do ator, de 53 anos. Do primeiro encantamento com o teatro, ocorrido num terreiro de candomblé até ao prêmio Shell de melhor ator, pela peça “In on It”, recebido na tempestuosa noite que assolou o Rio de Janeiro no dia 6 de abril. Caminhos tortuosos e saídas luminosas, para Hamlet, Fausto, Nietzsche ou mesmo para essas singelas perguntas.

Foto: Bruno Tetto / clix.fot.br

Jornal de Teatro: Qual foi seu primeiro contato com o teatro? O que daquele primeiro encantamento você ainda conserva?

Fernando Eiras: Eu cresci ao lado de meu pai, que era músico, compositor, produtor, e Babalorixá. Ele era um homem de terno e gravata que trabalhava no centro da cidade todos os dias em rádio como radialista, em televisão, como produtor e apresentador. Até os anos 70 todas as segundas e sextas feiras ele recebia entidades de luz, ou seja, preto velho um caboclo, um exu lindo chamado Zé pelintra, uma entidade criança.Meu pai evocava a presença dessas entidades e ele permitia que elas incorporassem, o mais espantoso era que eu não o reconhecia. Ele se transfigurava através de sua fé. Esse foi o meu primeiro contato com o teatro.

JT: Como cantor você estreou no Maracanãzinho, aos dez anos, quando se apresentou no festival da canção. Depois resolveu “complicar e ser ator”. Por que?

FE: Muito por causa dele primeiro eu queria ser músico, depois entendi que precisava
encontrar o outro, as pessoas, então resolvi fazer esse movimento até o outro, através
do teatro. Porque ( como dizia Maria Clara ); ...o teatro é  lugar de gente. Eu precisava de tempo, de fazer uma trança com o tempo na intenção do ator. Eu precisava sair de mim. Você precisa, as vezes , complicar pra chegar no simples.

JT: Com 14 anos, você foi apresentado ao Ziembinski por seu pai. Como foi esse encontro?

FE: Então meu Pai, através de seu prestígio, e fé em mim, conseguiu um encontro pra mim com o velho Zimba. Foi muito produtivo claro, eu estava diante da maior entidade do teatro que eu conhecia, e meu coração na boca, na mão. Um menino e sua vontade diante de um artista-homem sábio. Então ele percebeu em mim que minha necessidade era real e era semente. Me pegou pelas minhas mãos frias e suadas e me levou ao tablado.

JT: Foi ele quem te aconselhou a entrar no Tablado? Aquele foi seu principal período de formação? Entre pingüins, clown-mendigos e camaleões alface, quais lembranças você carrega daquele tempo?

FE: O tablado foi o lugar do início, do primeiro tombo, a primeira vez, o primeiro grupo, as primeiras peças, um menino num corpo gigante, o espírito do clown se revelando e simultaneamente revelando a criatura do ator. Fui apaixonado pela cor dos olhos vivos de Maria Clara Machado, minha professora.

JT: Sua estreia no teatro profissional acontece com "O Santo Inquérito", de Dias Gomes, em 1976. Um ano depois, já demitia Paulo Autran em cena, em “A morte do caixeiro viajante”.  Tem como descrever qual efeito isso tem para um ator de 20 anos?

FE: “O Santo Inquérito” pra mim foi o encontro mágico com a feiticeira Isabel Ribeiro, a maior  atriz que conheci e que amei profundamente, Isabel era uma rainha, onde quer que ela passasse deixava um rastro de luz, ela levava uma platéia inteira com ela. Isabel me ensinou o lugar do humano-divino no palco e como trabalhar com isso. Paulo Autran me deu o traço apolíneo, trabalhava com muita precisão e uma técnica muito sua e que foi aprimorada com o tempo. Foi um amigo inestimável, meu companheiro de trabalho durante aqueles dois anos em que emendamos “O caixeiro...” com  “Pai Herói”, novela de Janete Clair onde fomos pai e filho.

JT: Em 95 você vira Mário Reis no cinema, no filme “O Mandarim”, de Júlio Bressane, que juntava Caetano Veloso e Costinha. Como foi que você chegou até ao filme ou o filme chegou até você? O filme te deu o prêmio de melhor ator no festival de Brasília. Dez anos depois você venceu de novo com “Os Incuráveis”. O que suas experiências no cinema mudaram no seu jeito de interpretar?

FE: Foi Hélio Eichbauer (cenógrafo de teatro) quem me apresentou Júlio Bressane. Hélio e eu fazíamos um trabalho juntos sobre a música de Custódio Mesquita quando Júlio precisava de um ator para o  "O Mandarim ". Julio assistiu a peça e me viu fazendo Mário na peça e me chamou. Trabalhei com Julio durante dez anos, fizemos 3  grandes filmes juntos e ele me ensinou muita coisa valiosa sobre o cinema que ele faz e sobre o cinema que existe. Um cinema cheio de beleza poesia, um cinema preenchido de gestos trágicos um cinema de imagens que toca em você através dos sentidos dionisíacos. Durante esses dez anos  entre o primeiro prêmio e o segundo eu amadureci 100 anos.“Os Incuráveis” que eu considero meu melhor trabalho em cinema só foi possível por que eu havia passado pelo Julio e também por que pude contar com Gustavo Acioly (diretor de “Os Incuráveis”) Dira Paes e Lula Carvalho (fotógrafo do filme) além de uma equipe linda.

JT: Em 99, você faz “As Três Irmãs”, seu primeiro trabalho dirigido por Enrique Dias. Como foi esse encontro com ele? Além de Tchekhov, você já atuou em peças de Shakespeare, Moliére, interpretou o Fausto, numa adaptação de Goethe. Como é fazer personagens que são interpretados há décadas (ou mesmo há séculos) no mundo inteiro?

FE: Nosso primeiro encontro foi regido por Anton tchekhov , o que acontece é que tanto Kike quanto eu temos amor por Tchekhov , não só pelo criador como também pela criatura. Está tudo no texto, ele nos dá tudo, o que você tem que fazer é preencher, chegar no lugar que ele propõem. É como se você tivesse fazendo alta costura. Portanto quando você faz uma parceria com alguem num texto do Tchekhov você fica irmanado com esse alguém. Porque a experiência é vertical, você pega no martelo e vai esculpindo a pedra  até que de dentro da pedra venha surgindo a imagem.
Com o Shakespeare foi diferente, foi mais autoral, nos conversamos com o texto o tempo todo, usando e contando nossas vivências e experiências misturadas com as dele.
Levamos o Tchekhov pra dentro do Hamlet onde eu contava uma história que havia
acontecido comigo nas “Três irmãs.” No Molière eu usei e brinquei muito com os recursos que o mago Ivan de Albuquerque me dava, seu poder de envolvimento que leva um ator a lugares surpreendentes, e é claro havia ali conosco Rubens Correia que é um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos. Não me lembro de ter visto ou ouvido falar de um ator com a capacidade de comover e envolver uma platéia como Rubens fazia, era extraordinário. No Goethe fomos muito ajudados pela brilhante tradução de Geraldo Carneiro e também porque tivemos tempo para tirar o verniz da nossa reverência e partir para cima do texto, ou seja, nos apropriarmos daqueles signos. Tive também a sorte de contar com o carinho e o companheirismo de Gabriel Braga Nunes e de Moacir Chaves.

JT: Ainda sobre personagens consagrados, chegamos ao símbolo maior deles. Fala um pouco sobre o “Ensaio. Hamlet”, o processo de criação e as saídas que vocês encontraram para recriar a peça mais citada do mundo.

FE: Fernando Sabino diz muito bem uma coisa sobre o escritor. “Quando o leitor olha para o poeta, ele vê no poeta o que o poeta esta vendo.” É uma espécie de triangulação, onde o artista sai do foco para dar lugar as idéias e então o artista-ator-poeta experimenta uma liberdade reveladora de si enquanto o leitor-platéia está em contacto direto com a obra-personagem, sem a interferência da possível vaidade do ator-poeta. Sem vernis Sem ego. Esse é um exercício muito rigoroso,mas fundamental para que alguma coisa aconteça entre a platéia e o ator. Tentamos trabalhar assim com o Hamlet no nosso ensaio. Na intenção de aproximar o Príncipe de nós.

JT: “Pixinguinha”, “A Noviça Rebelde”, “Ópera do Malandro”, você já atuou em vários musicais. É um tipo de interpretação diferente? O que mais te atrai no gênero? E qual sua maior dificuldade?

FE: A melhor coisa de um musical é que de repente você pode sair cantando no meio da cena, e isso é muito lúdico, muito divertido. É claro que o ator tem que saber cantar e ter a  música dentro de si. A minha maior dificuldade é equalizar a cena com a atmosfera da canção e não perder a qualidade da cena, e a relação com o outro que é fundamental.

JT: Como foi essa história de interpretar uma peça no avião?

FE: Ivan de Albuquerque e Rubens Correia inventaram um personagem dentro de um avião em trânsito real e me deram essa aventura para ser realizada nuns voos que partiam do Rio de Janeiro com destino a várias capitais do país, nos anos oitenta. Não sei como fiz aquilo, primeiro porque avião, decididamente não é um lugar para se fazer teatro e depois eu tenho medo mesmo. Só que eu vivo disso, o dinheiro era muito bom e eu topei!